O prefeito de Cabo Frio, Serginho Azevedo, subiu o tom ao rebater críticas que recebeu por ter pedido que os moradores da cidade evitem dar esmolas a pessoas em situação de rua. Em vídeo, Serginho dirige-se exclusivamente ao padre Júlio Lancellotti, que contestou o prefeito em sua conta no Instagram. O padre compartilhou matéria da Folha dos Lagos sobre o assunto. Serginho afirmou que a matéria distorce uma fala sua. Disse também que o padre deveria fazer uma “checagem da matéria jornalística”. O prefeito não indicou qual foi exatamente a distorção. Pois não houve distorção. A reportagem da Folha transcreveu o pedido do prefeito cabo-friense. O vídeo da audiência foi postado pelo próprio Serginho.
– Eu mesmo dei dinheiro várias vezes, mas, gente, não façam mais isso. Não acomodem as pessoas nessa situação. Por que eu estou dizendo isso? Porque essas pessoas não ficarão sem ter o que comer. Nós temos a assistência social para assegurar que todos tenham alimentação. Não estimulem a pessoa a se acomodar em situação de rua. Não façam isso – disse o prefeito, pedindo que igrejas e entidades que costumam doar comida se juntem à assistência social do governo para uma ação conjunta.
Na homilia deste domingo, o padre Julio Lancellotti voltou ao tema:
– O que é que está acontecendo? Por que a população de rua aumenta? Será que dá para explicar que é porque alguém dá esmola? E ficam essas campanhas: ‘não dê esmola’. Como se dar esmola fosse a única causa de alguém estar na rua. Eu convivo com população de rua há mais de 40 anos. Não conheço ninguém que foi para rua porque é melhor pedir esmola. A esmola é uma consequência de você estar na rua. Não uma causa. São explicações muito simplórias, simplistas. E nós estamos vivendo uma onda neofascista nunca vista no Brasil.
Em seu vídeo, Serginho não fez novamente esse pedido em específico, nem voltou atrás nessa declaração. Mas, de forma mais ampla, disse que o governo municipal demonstrou em audiência pública a necessidade de cadastrar e proteger o morador em situação de rua, citando casos em que pessoas teriam recebido comida envenenada e estragada. E concentrou-se em polarizar o debate com o padre Júlio Lancellotti, que tem mais de dois milhões de seguidores no Instagram. “Eu me dirijo ao senhor, que usou a sua imagem, a sua página, para falar mal da cidade de Cabo Frio, falar que somos contra moradores de rua”. Serginho chegou a pedir uma retratação de Lacellotti.
No entanto, não há na postagem do padre Júlio Lancellotti críticas à cidade de Cabo Frio. Na verdade, o padre fez uma crítica a prefeitos que instituem políticas higienistas como medidas de assistência social. A postagem traz um print da matéria da Folha com a seguinte legenda: “Impressionante a cruzada de vários prefeitos pelo Brasil contra a população em situação de rua @prefeitura_cabofrio”.
Lancellotti é conhecido por sua atuação na defesa dos direitos humanos.
Ao fim do vídeo, gravado no coreto da Praça Porto Rocha, diante da matriz da Igreja Católica, Serginho leu uma mensagem bíblica de João 14:27, que endereçou ao padre e a toda a população de Cabo Frio. “Deixo-lhes a paz, a minha paz lhes dou, não a dou como o mundo a dá. Não se perturbem os seus corações, nem tenham medo.”
Aplausos, protestos e vaias
A reportagem que chamou a atenção do padre foi publicada no site da Folha na última terça (04), com destaque na edição impressa desta sexta (07). O texto mostra a repercussão de um discurso do prefeito cabo-friense Serginho Azevedo durante uma audiência pública sobre o ordenamento do bairro Braga. No encontro, o chefe do Executivo municipal alertou para o que chamou de “acomodação” das pessoas em situação de rua por meio da doação de dinheiro e alimentos.
O discurso arrancou aplausos, mas também protestos e vaias de parte do público presente no encontro. Uma das pessoas a confrontar o discurso do prefeito Serginho foi o psicólogo Nathan Barbosa, que há 10 anos atua com políticas de assistência social e pessoas em situação de rua, e que já foi voluntário em projetos de distribuição de comida e cobertores durante a pandemia.
– Estive presente durante toda a audiência. O momento específico do “não façam isso”, referindo-se à esmola, foi dita pelo prefeito no contexto de uma crítica às ações de caridade e o papel das igrejas com as pessoas em situação de rua. Foi uma postura que nitidamente propôs desincentivar a população de ajudar pessoas em situação de rua, sob o velho argumento de que essas ações (um prato de comida) deixariam as pessoas cômodas nas ruas – revelou Nathan em conversa com a Folha.
Para Nathan, negar esmola ou prato de comida não resolve o problema.
– É urgente aumentar a estrutura de trabalho das equipes técnicas do município. Na assistência social e na saúde, é preciso mais psicólogos, assistentes sociais, médicos e enfermeiros com condições de trabalho para acompanhar as pessoas em situação de rua.
No entanto, segundo o psicólogo, “atualmente se vê o protagonismo de cargos comissionados e políticos sem qualquer amparo técnico, achando que uma boa intervenção é retirar pertences de pessoas, colocá-las em ônibus e outros absurdos que demonstram a cooptação dos órgãos públicos para aumentar capital político pessoal”.
Segundo Serginho, todas as pessoas em situação de rua que vivem em Cabo Frio estão devidamente cadastradas.
– Nós fizemos um censo. Quando assumimos o governo havia 250 pessoas em situação de rua cadastradas, mas nosso censo real e efetivo mostra que são 478 pessoas. Destas, nossa assistência social já encaminhou 60 de volta à família, em outro município. Mas é como se não tivéssemos resolvido nada porque todas as outras continuam fazendo um movimento cíclico.
– Se a pessoa for de Cabo Frio, vamos encaminhá-la ao trabalho. E aquele que não for cabo-friense, eu vou levar pra fora de Cabo Frio. Mas não vou fazer de qualquer maneira, nem usando a força. Mas fazendo como já temos feito, dentro do processo de tratamento, reencaminhando-o para a família. Quem não é de Cabo Frio eu não vou acolher, mas vou tratar para que ela possa voltar pra casa. Andando na madrugada e conversando com algumas pessoas, soubemos de pessoas que foram trazidas pra cá, deixadas na rua, e não sabem nem em que cidade estão. Municípios que estão trazendo pessoas em situação de rua e dependentes químicos para nossa cidade para se livrarem do problema. E nós vamos tratar o problema – prometeu.
Serginho também anunciou que vai retirar a sede do CAPs do Braga e o abrigo (casa de passagem) de São Cristóvão, por serem próximos aos dois pontos de venda de crack na cidade (Morubá e Manoel Corrêa). Com relação ao abrigo, falou que o governo já está em busca de um novo lugar, “próximo à zona rural, que seja mais acolhedor e que propicie, inclusive, tratamento terapêutico, psicológico, psiquiátrico, do CAPs, e que a pessoa possa trabalhar, se ela quiser”. O prefeito também sinalizou como positiva a sugestão de criar uma Comunidade Terapêutica dentro do abrigo municipal.
Após a audiência, Nathan lançou na internet um abaixo-assinado com o objetivo de “impedir o retrocesso contra pessoas em situação de rua”. O documento (disponível no site www.change.org) já reúne cerca de 250 assinaturas (a meta é chegar a 500). Nele o psicólogo afirma que a casa de passagem não pode ir para uma área rural.
“O objetivo de nossa tipificação nacional é fortalecer vínculos familiares, construir autonomia e permitir que ocupem a cidade de forma digna. Numa zona rural, a dependência da Prefeitura se tornará ainda maior, de forma que esta localização só servirá para tirar a pobreza dos olhares alienados de quem não deseja vê-la. Nossa tipificação nacional não indica comunidades terapêuticas. Apesar do prefeito não ter dito este nome, a descrição dos serviços da nova casa de passagem na zona rural apontam a possibilidade de uma comunidade terapêutica que não faz parte do SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Nossa população vem debatendo os absurdos cometidos nesses espaços e o Brasil já decidiu que não vamos assimilar esta proposta nas nossas políticas públicas”, diz um dos trechos do abaixo-assinado.
– Essa gestão está preferindo atender os anseios de limpeza social e criminalização da pobreza presentes em alguns segmentos da sociedade que estão distantes da compreensão sobre o que leva as pessoas ficarem nas ruas. É preciso ter espírito público para mostrar que a pobreza não é um problema moral, como falta de vontade de sair das ruas, tampouco a pobreza é sinal de criminalidade. Eu presenciei um discurso belicoso em que se supõe que pessoas em situação de rua são perigosas e, na audiência, o medo apareceu como pretexto para justificar ações que violam direitos e princípios éticos básicos. Não é possível esperar da população uma compreensão global sobre a pobreza, então é responsabilidade do poder público conscientizá-la. A população pode ajudar cobrando um manejo ético e humano do problema, focando na origem e não criminalizando quem está nas ruas – pontuou o psicólogo, que criticou também a forma como o governo vem atuando na questão do combate ao uso de drogas no bairro Braga.
– Atualmente a gestão municipal está privilegiando as ações instagramáveis, isto é, as ações que permitem vídeos para redes sociais, normalmente protagonizados pelo atual secretário. Através desses registros, é possível testemunhar uma atuação preocupante. A atual gestão está associando a assistência social com órgãos de segurança pública, crendo ser necessário um choque de ordem que é uma verdadeira degeneração da política nacional de assistência. Isso passa a impressão de que a atual gestão vê na pessoa em situação de rua um potencial criminoso, um discurso muito repetido na audiência pública - avaliou.
Com o compartilhamento do Padre Júlio, a discussão rapidamente se espalhou, atraindo comentários de usuários de várias partes do Brasil. “Aqui em Belém o atual prefeito, cria dos Barbalhos, fechou o restaurante popular que também atendia pessoas em situação de vulnerabilidade. Lamentável!”, escreveu um homem identificado como Gui Nunes. “Cada um faz o que seu coração manda. Se existe alguém na rua precisando de ajuda não é porque ele quer, talvez se o poder público olhasse mais para essas pessoas não precisavam pedir”, completou Beth Santos, outra seguidora das redes sociais do padre.