sábado, 23 de novembro de 2024
sábado, 23 de novembro de 2024
Cabo Frio
21°C
'KIT ILUSÃO'

'Tratamento precoce' contra Covid na região preocupa especialistas

São Pedro anunciou fornecimento de remédios sem eficácia comprovada contra doença; Arraial e Búzios deixam decisão nas mãos dos médicos

10 abril 2021 - 10h59Por Rodrigo Branco

Completado um ano do primeiro caso de Covid-19 na Região dos Lagos, já foram registrados cerca de 32 mil casos e mais de 1.100 óbitos, segundo os dados oficiais das secretarias municipais de Saúde. Enquanto não ocorre a vacinação em massa para imunizar a população, alguns municípios da Região dos Lagos encampam o discurso do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para apostar num pretenso tratamento precoce contra a doença, fato rechaçado por autoridades científicas, entidades médicas e até mesmo fabricantes de medicamentos (leia aqui, aqui e aqui) prescritos para um suposto combate ao novo coronavírus, na contramão de fake news que incluem a propagação de falsas pesquisas e sites com análises enviesadas.

A despeito da falta de comprovação científica, a Prefeitura de São Pedro da Aldeia tem feito divulgação institucional da distribuição de medicamentos “para combate precoce da doença após avaliação e receita médica”. Em comunicado feito há alguns dias, a Secretaria de Saúde anunciou a distribuição de cinco mil kits de medicamentos, composto por substâncias como azitromicina, prednisona, ivermectina e dipirona.

Em Búzios, se não há campanha institucional, os médicos da rede municipal têm liberdade de prescrever os medicamentos que quiseram, segundo a Folha apurou. A reportagem não teve resposta oficial da Prefeitura, mas, a um portal de notícias, a assessoria de imprensa informou que o município “não realiza tratamento precoce, e sim diagnóstico precoce”.

Há algumas semanas, chegou-se a divulgar que o balneário teria ‘zerado’ as internações por Covid. Embora o município não tenha feito qualquer alusão à ‘tratamento precoce’ ou ‘Kit Covid’ na sua propaganda, redes disseminadoras de notícias falsas associaram o alívio a uma suposta política de orientação oficial para o uso dos medicamentos. A ‘fake news’ chegou a ser publicada nas redes sociais do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), mas foi logo desmentida.

Em Cabo Frio e Arraial do Cabo, não há determinação central para o uso de ‘Kit Covid’, mas nas últimas semanas, indicações feitas ao Executivo neste sentido foram apresentadas nas duas Câmaras. Procurada, a Secretaria de Saúde de Cabo Frio informou que não tem protocolo institucionalizado para o uso das substâncias. Já a pasta, em Arraial, disse que não há uma recomendação da secretaria para a adoção desse tipo de tratamento, mas o médico tem liberdade para indicar, se for esse seu entendimento e que o tratamento indicado para cada paciente “faz parte da conduta médica, ou seja, cabe ao profissional indicar o tratamento mais adequado de acordo com o diagnóstico em cada caso”.

O que há de concreto é a reação contrária de especialistas ao uso das substâncias. Entidades nacionais e até mesmo a Organização Mundial de Saúde já desencorajaram um suposto ‘tratamento precoce’. Em uma nota conjunta assinada em janeiro, a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) falaram em “desinformação dos negacionistas”. Além disso, frequentemente, as duas entidades alertam sobre os riscos para a saúde dos pacientes do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid.

“As melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no 'tratamento precoce' para a Covid-19 até o presente momento. Pesquisas clínicas com medicações antigas indicadas para outras doenças e novos medicamentos estão em pesquisa. Atualmente, as principais sociedades médicas e organismos internacionais de saúde pública não recomendam o tratamento preventivo ou precoce com medicamentos, incluindo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entidade reguladora vinculada ao Ministério da Saúde do Brasil”, diz o texto.

No último dia 31, a OMS também declarou que não é recomendado o uso da ivermectina, remédio usado no combate a parasitas como vermes e piolhos, no tratamento de pacientes infectados. Além disso, a própria farmacêutica Merck, que desenvolveu o medicamento, se pronunciou para informar que não há comprovação científica da eficácia da ivermectina no tratamento contra a Covid.

Para o infectologista Charbell Miguel Haddad Kury, que é doutor e mestre em microbiologia e professor da Faculdade de Medicina de Campos dos Goytacazes, o debate em torno do tratamento aos pacientes infectados pelo novo coronavírus é “mais ideológico do que técnico”.

O especialista pondera que, ao longo de mais de um ano de pandemia, os cientistas modificaram a compreensão sobre vários aspectos da doença, mas que ainda não há qualquer evidência de que seja eficiente o uso de medicamentos como a ivermectina, a cloroquina e a azitromicina no tratamento. Pelo contrário, o médico enumera os riscos na utilização das substâncias.

Na opinião do infectologista, a crença no suposto ‘tratamento precoce’ pode retardar a busca por atendimento médico em uma unidade de Saúde e aumentar o risco de complicações e de mortes. Para finalizar, Kury crê que os municípios devem empregar o dinheiro na compra desses medicamentos para insumos que estão em falta, como sedativos para intubação de pacientes, por exemplo.

– O primeiro pilar que a gente se debruça do tratamento precoce é o uso [dos remédios] sem indicação médica, e fora de indicação clínica, o que é superperigoso. Certas medicações como o remédio de verme, a ivermectina, por exemplo, podem passar à região encefálica e prejudicar os pacientes nos processos de intubação e extubação. Ele acorda com alteração neurológicas, muitas vezes pelo uso excessivo de algumas medicações. Além disso, temos lesões no fígado e no rim pelo excesso de medicações. Também podemos lembrar que o uso precoce de antibióticos pode alterar a flora intestinal como, por exemplo, a azitromicina. E a cloroquina pode alterar o coração, produzindo arritmia cardíaca. Ou seja, não existe tratamento precoce. O que nós colocamos é a necessidade do famoso ‘tratamento no momento adequado’. As medicações que usamos são usadas no momento adequado e isso tem de ser feito mediante o acompanhamento médico adequado – explica Kury, que conclui.

– Se tratamento precoce funcionasse, os Estados Unidos, que são referência em estrutura de Saúde, não investiriam em vacinas para 300 milhões de pessoas. Só há dois instrumentos para combater a Covid: distanciamento social e vacina – emenda.

O médico Marcelo Paiva Paes de Oliveira engrossa o coro com o colega. Com a experiência de ter atuado na implantação de políticas de Saúde pública nos níveis municipal, estadual e federal, o atual diretor do Hemolagos é enfático ao desaconselhar o chamado ‘tratamento precoce’.

Marcelão, como é conhecido, destaca que anteriormente os médicos não receitavam medicamentos que não fossem recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), por medo de condenações judiciais e de processos por má conduta ética, mas que a disseminação em massa de informações falsas nas redes sociais [“como dizia o filósofo Umberto Eco, as redes deram voz a uma legião de estúpidos”] acabou com o receio dos profissionais.

– Não se deve dar tratamento precoce, mas suporte terapêutico ao paciente com Covid. Isso inclui tudo, desde medicação antipirética, para abaixar a febre, analgésica e anti-inflamatória e até mesmo o uso da máscara de respiração extracorpórea, a máscara de intubação. Isso que dá resultado na Covid. Esse é suporte terapêutico adequado no momento adequado. O que estamos vendo é que não temos suporte terapêutico adequado, no momento adequado. Então as pessoas estão indo pra casa, às vezes, já precisando de suporte terapêutico, mas sem vagas nos hospitais, e apelando para qualquer coisa. E os médicos que perderam a lucidez e se encontraram nessa onda de estupidez das redes sociais, alguns deles estão fazendo a despeito de todas as recomendações expressas para que não o façam – destaca Marcelo Paiva.

São Pedro se posiciona – Em nota, a Prefeitura de São Pedro da Aldeia informa que ampliou os atendimentos primários e a testagem para os casos suspeitos de Covid-19 em seis postos de saúde do município. A Secretaria de Saúde ressalta que toda medicação deve passar por avaliação do profissional e apenas é disponibilizada à população mediante prescrição por receita médica.

O objetivo é aumentar as possibilidades de tratamento aos moradores e descentralizar a procura no centro de triagem da doença, anexo ao pronto-socorro. Toda medicação receitada passa por critério e análise de cada médico. O texto destaca que os usuários do SUS precisam seguir os quatro passos para o atendimento aos casos de suspeita de Covid-19: procurar uma unidade de saúde de referência mais próximo de sua residência ou o Centro de Triagem; ser avaliado por equipe técnica; realizar o teste rápido ou Swab, conforme orientação da equipe; passar pela conduta médica, para a indicação ou não do tratamento.

A Prefeitura diz ainda que os testes estão disponíveis de 9 às 13h, nos postos a seguir: Esf Vinhateiro – Travessa Antônio de Araújo Mendonça, s/n, Vinhateiro; Esf Bairro São João I – Endereço: Rua São Jorge, s/n; Esf Campo Redondo – Rua Luiza Terra, s/n, Campo Redondo; Esf Alecrim – Estrada do Alecrim, n° 80, Parque Arruda; Esf São Mateus – Rua Manuel Antônio Júnior, s/n, São Mateus; UBS Balneário – Rua São Jorge, s/n, Balneário. Por fim, o município aldeense destacou que “médico e paciente não são obrigados a seguir as recomendações, tendo total liberdade de seguir ou não ao tratamento”.