Com dialeto próprio e muitos causos, Arraial completa 38 anos
Memórias da cidade são contadas de geração em geração e fazem parte do livro "Cabistezas"
Arraial do Cabo chega, neste sábado (13), aos seus 38 anos de emancipação político administrativa. A cidade, outrora simples vila de pescadores, preserva até hoje peculiaridades de sua cultura, no que se inclui um dialeto todo próprio dos cabistas e causos que são contados de geração para geração. Alguns históricos, outros folclorizados, mas que muitos juram, de pés juntos, serem verdadeiros. E se alguém questionar, é “usca” na certa!
Para homenagear a cidade, a Folha foi em busca de histórias contadas por figuras conhecidas e apaixonadas pelo Arraial. Carioca da Tijuca, o professor Eraldo Maia chegou na cidade em janeiro de 1978. Em um vídeo gravado para a série “Talentos do Arraial do Cabo” (disponível no You Tube), ele conta que se surpreendeu com alguns dialetos cabistas. Mas o causo mais curioso tem a ver com a história da emancipação da cidade.
– No dia 14 de maio de 1985, eu voltava de Cabo Frio para Arraial, e na altura da Praça do Guarani havia um foguetório e clima de festa na cidade. E aí perguntei às pessoas o que estava acontecendo, e disseram “é o Brizola, governador, que está lá no Barcellão (estádio Hermes Barcellos) assinando nossa emancipação”. Isso foi no dia 14 de maio, e eu me lembro bem porque era véspera do meu aniversário, que é dia 15. Mas de repente começam a comemorar a emancipação de Arraial do Cabo no dia 13 de maio e eu não entendi. Por que dia 13 se a emancipação foi assinada dia 14? Conversando com o saudoso Reinaldo Fialho, descobri que estava o governador prestes a assinar a lei, ao lado de todo o pessoal da comissão de emancipação, inclusive o próprio Reinaldo, quando Brizola perguntou: “vocês querem que eu coloque a data de 14 de maio ou, em homenagem à abolição da escravatura, que eu coloque 13 de maio como data da emancipação?” E aí a turma gritou “coloque 13, é 13…”. Por isso, embora tenha sido emancipada em 14 de maio de 1985, a comemoração é no dia 13.
De família tradicional cabista, a jornalista Fernanda Carriço (autora do livro "Sabor & Prosa", lançado pela Sophia Editora) não dispensa um “fala, galo”, mas também cita a famosa vaia “usca”, além de “baca”, “oedja” e “quié”, que fazem parte do dialeto peculiar cabista. “A linguagem do nosso povo merece ser eternizada. É uma cultura muito rica. Quem não ama Arraial e o nosso povo criativo e engraçado bom sujeito não é”, comenta. E como todo bom cabista, ela também tem muitos causos pra contar.
– Lembro da minha infância recheada de personagens históricos de Arraial, como seu Tamanco, a velha sem nariz, seu Japão, seu Nhozinho, dona Castorina e tantos outros. A história mais interessante é difícil escolher, mas lembro de um período que ficamos mais de uma semana sem luz na cidade e foi inesquecível. Pelo que lembro, os postes que levavam energia para cidade tombaram no Foguete por causa de um grande temporal, e amargamos escuridão total. Na verdade, foi ruim por causa da comida (perdemos muita coisa). Mas o lado bom é que todos iam pra rua à noite conversar à luz do luar e das estrelas. Eu era adolescente e nunca vou esquecer. Tinha os acampamentos na Ilha do Farol que eram lendários. Uma vez o temporal pegou a gente, levou barracas e tudo, e fomos parar na casa da Marinha. Éramos umas 15, 20 pessoas. Passamos a noite ouvindo histórias da mulher de branco que rodava por lá nas noites e aterrorizava os vigias. Sem contar a árvore Figueira: fiz tirolesa ali na época que era lobinha (escoteira) em um outro acampamento – recorda Fernanda.
Quem também tem causos de sobra pra contar é o pesquisador cabista Leandro Miranda, autor do livro “K-36 - o zepellin que caiu no Cabo”, lançado pela Sophia Editora. O acidente aconteceu na madrugada de 17 de janeiro de 1944, em um morro da Ilha do Farol. Segundo ele, esse fato histórico ajudou a mudar o dialeto da população.
– Sem dúvidas, a queda do K-36 é, pra mim, a história mais interessante. Um fato histórico, da Segunda Guerra Mundial, que mexeu com a população em muitos aspectos, inclusive no modo de falar. Por exemplo, quando foram fazer o resgate do zepellin, os pescadores que ajudaram ganharam algumas peças e umas ferramentas, como uma lanterna, que os americanos chamam que "flashlight". Mas o cabista não sabia falar inglês e “flashlight” virou “faxilati”, e até hoje muitos cabistas não falam “lanterna”. Ainda hoje, meu pai, quando falta luz, fala “menino, pega o faxilati lá na gaveta”. A lona que foi do balão também foi distribuída, e como era impermeável, teve um pescador (Nicomedes, da Praia dos Anjos) que pediu um pedaço para transformar em roupa de pescaria, e foi aí que roupa de pescaria virou “roupa de aliado”, e é assim até hoje. Outro causo ligado à queda do zepellin é que o primeiro pescador que foi fazer o resgate falou “ei, Johnny, que horas que o avion caiu in morroni?” (ei, Johnny, que horas o avião caiu no morro), querendo falar inglês sem saber. E na pesquisa a gente descobriu que um dos acidentados resgatados no alto da Ilha Maramutá, onde o zepelim caiu, era Greg Johnny. Provavelmente o pescador ouviu alguém falar “Johnny” e soltou a frase.
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HISTÓRIAS E CAUSOS QUE VIRARAM LIVRO
Tantos causos, histórias e dialetos típicos chamaram a atenção da pesquisadora Meri Damaceno, autora de “Cabistezas – causos do Arraial”. Com lançamento de uma reedição pela Sophia Editora marcado para o próximo dia 24 de maio, a obra é um resgate da memória de Arraial do Cabo, e narra histórias, lendas, personagens, linguajar típico e particularidades presentes no imaginário coletivo da cidade. Na publicação constam registros sempre temperados com bom humor sobre bruxas, lobisomens e procissões fantasmagóricas, além de histórias sobre figuras impagáveis, como Tente Come-brasa, Fernandinho, Bôco, Bau e Tái, entre muitos outros. Em homenagem ao aniversário de Arraial do Cabo, a Folha conversou com Meri.
Folha - Como foi o processo de criação de “Cabistezas”?
Meri - Maravilhoso. Minha única preocupação era aquela ventania de Arraial do Cabo. Foram mais ou menos cinco meses de pesquisa, e por incrível que pareça, não peguei nenhum vento (risos). Mas foi um processo muito gostoso, muito interessante andar em Arraial do Cabo atrás das pessoas, entrando nas casas, conversando, conhecendo de perto todo mundo. Conhecer a história do Cabo foi muito bom, ainda mais com o apoio de Ercília Carriço (morta em 16 de outubro de 2019, aos 72 anos, vítima de infarto), que era a pessoa que abria as portas das casas para mim. Foi tudo muito alegre e muito divertido.
Folha - O que significa cabisteza?
Meri - Cabisteza é o nome que eu dei para os causos dos cabistas. Como foi “Cabofrianças”, meu primeiro livro, com causos de Cabo Frio, as nossas memórias, as nossas histórias, nossas cabofrianças. Cabisteza é a mesma coisa, só que dos cabistas. É uma palavra criada da minha cabeça com esse significado, de causos e histórias de Arraial do Cabo.
Folha - Conseguiu contar todos os causos que queria ou algum ficou de fora do livro?
Meri - Acho que eu contei tudo. Na verdade acho que esse material rende até um outro livro se eu quiser utilizar as histórias na íntegra, porque precisei selecionar muita coisa. Cabofrianças também foi assim. Não digo que ficou nada de fora, mas as entrevistas (foram cerca de 70), se usadas na íntegra, rendem um outro livro.
Folha - Quais cabistezas mais chamaram sua atenção no processo de escrever o livro?
Meri - O livro todo é muito bom, e tudo me chamou a atenção. Mas se eu tiver que escolher alguma coisa, acho que é o processo das vaias (usca), que é muito interessante. Como eles escolhem esse momento da vaia? Por quê? E é um processo coletivo, talvez o único de Arraial do Cabo, já que nas outras histórias cada uma tem seu personagem. Mas neste caso das vaias, não. É um fato que envolve vários grupos: o da Praia dos Anjos, Praia Grande, Fábrica de Gelo, Prainha… E eles vaiam qualquer coisa: a gaivota que não pega o peixe, o lixo que sai voando pelo asfalto, o carro que quebra na frente desses grupos, o pneu que fura, o político que não se agradam, um artista de televisão… Não existe um parâmetro: o que acontece no momento em que esse grupo está junto é vaiado. E isso é uma tradição muito interessante que não consegui encontrar uma explicação. Mas é algo muito enraizado do povo de Arraial do Cabo. Acho que isso não existe em nenhum lugar do planeta, de juntar um grupo de amigos pra sair vaiando qualquer coisa, em qualquer lugar, em qualquer momento. E o próprio linguajar deles: atchesa, usca, bobalhão, xó que queixa, galo, galesca… Isso é Arraial!
Pra quem ficou curioso com o vocabulário peculiar dos cambistas, a Folha listou 17 verbetes mais usados. Confira!
ATCHESA! – Expressão usada na pesca que significa puxar a corda da rede.
CALABOCA – Expressão que significa algo como “Puxa, nem me fale!”
É O GALO, ELE! – Expressão usada para exaltar (ou ironizar) alguém.
É RUIM DE TCHU, HEIN! – Negativa a uma pergunta.
GALO - Forma de tratamento entre cabistas.
HAM! – Interjeição no início da frase que dá ênfase a um comentário.
LASCA E BREIA – Abrir um pão e passar manteiga.
NADA, BOBO! – Algo como “Claro!”
OEDJA! ou EU EIDJA! – Frase que expressa indiferença ou “Tô nem aí!”
PORROU NA LULA (OU NA ANCHOVA) – Sinônimo de ‘mandar bem’, ter sucesso em algo.
QUIÉ DJELE OU DJELA (CORRUPTELA DE ‘DELE’ OU’DELA’) – Questionamento a alguém.
SE HÁ DE ME DOER UM DENTE – Frase que expressa indiferença ou “Tô nem aí!”
TÁ ESTRAGADO – Comentário irônico para algo muito bom.
TÔ TCHEZO! – Estou sem dinheiro.
TOMEI CAFÉ AGORA - Não quero fazer isso.
USCA! – É a vaia cabista.
XÓ, QUE QUEIXA! – Que pena!