Netos em casa: Araceli Matus e Junior Carriço reverenciam Mercedes Sosa e Victorino Carriço
Parceria liga Buenos Aires a Cabo Frio em apresentação na Praia do Forte, neste domingo (13), a partir das 19
Casa, mais do que espaço físico, é abrigo de memórias, sentimentos e percepções, que dão à vida algum sentido. Uma casa de criação, de encontros e de multiculturalidade permitiu a Araceli Matus ser o que é. Feito tatuagem. Eternizada na pele, a capa do disco ‘Geraes’, de Milton Nascimento, simboliza seu amor pela música brasileira, que surgiu, em grande parte, a partir do convívio com a avó, Mercedes Sosa (1935-2009) – uma das mais aclamadas vozes da história da Argentina. Casa, para Junior Carriço, significa algo semelhante. É, em suas palavras, “lugar povoado de versos e melodias”. É desta forma que ele relembra, no seu livro de poesia “Recovecos” (2017, 96 págs.), a infância ao lado do avô, Victorino Carriço (1912-2003) – o poeta que traduziu Cabo Frio, Arraial e São Pedro em poesia.
O destino, por sorte, tratou de cruzar seus caminhos. Juntos, os dois sobem ao palco montado na Praia do Forte, em Cabo Frio, no dia do aniversário de 407 anos da cidade, neste domingo, 13 de novembro, a partir das 19h. É uma parceria que, ao marcar reverência a Mercedes Sosa e a Victorino Carriço, abre corredor entre Cabo Frio e Buenos Aires através da música. Foi numa de suas corriqueiras visitas ao Brasil que Araceli conheceu Junior, há três anos, por intermédio de um amigo. Da bagagem, a cantora portenha tirou uma melodia. Junior, como bom anfitrião, rascunhou a letra: “Eu que pisei no céu com a ponta do pé / Só sei que aceitei do mar a vez de beijar meu calcanhar (...)”. Surgiu, assim, a canção “Primero de Enero”. Depois, no meio da pandemia, compuseram “Confinado”. Ambas fazem parte de “Matuseándose”, disco que Areceli lançou em 2021.
– Na minha casa se escutava muita música em português, entre muitas outras coisas. Meu irmão viveu muitos anos no Brasil. Sua filha é carioca. Tenho muitos amigos no Brasil, não apenas no Rio – conta, durante entrevista realizada por videochamada num fim de tarde de outubro.
Em 1976, Milton Nascimento lançava “Geraes”, com a participação de Mercedes Sosa na faixa “Volver a los 17”. Foi assim que parte do público brasileiro passou a apurar os ouvidos para aquela que é considerada como a maior intérprete do folclore argentino. No mesmo ano, uma junta militar derrubou Isabelita Perón da presidência. Em 1979, perseguida pela ditadura, Mercedes Sosa deixou o país, exilando-se na Europa. Por sua defesa dos oprimidos e marginalizados, recebeu a alcunha de “a voz da maioria silenciosa”. – Minha vó, quando não podia trabalhar na Argentina, no começo dos anos 1980, foi cantar no Brasil. Para ela, era muito importante o Brasil. Quando ela voltou para a Argentina, em 1982, era comum recebermos músicos brasileiros em casa. Kleiton & Kledir, Milton Nascimento... Milton sempre, sempre – diz Araceli, pausadamente, com a voz grave, numa reverência solene e intimista ao compositor e cantor brasileiro, que completou 80 anos em 2022.
E continua:
– Depois, no ano de 1985, minha vó produziu aqui na Argentina um espetáculo chamado “Sem Fronteiras”, com mulheres da América Latina. E, do Brasil, trouxe Beth Carvalho. Então, conheci a Beth. E, também, João Gilberto, Caetano, Chico, Gal Costa. Assim eu cresci. Pianista desde tenra idade – começou a estudar o instrumento com apenas sete anos – e musicoterapeuta, Araceli quase não encontra palavras para explicar o porquê de lançar, somente agora, um trabalho solo – ela comemora 46 anos dois dias antes da apresentação em Cabo Frio.
– Sempre toquei em grupos... Na vida, às vezes, é assim. Não tenho filhos, não me casei. Sabe um peixe que vai sempre contra o cardume? Eu – compara a artista.
Além da parceria com Junior, Araceli dispôs de um repertório com a assinatura de nomes como Eduardo Mateo, Caetano Veloso, Rubén Blades, Hugo Fattoruso, Lo Borges e Vittor Ramil (este, irmão mais novo de Kleiton & Kledir). A escolha se deu por critério simples: procurou canções que possibilitassem encaixe preciso para sua voz. Isto se faz notar, sobretudo, pela suavidade e delicadeza de arranjos que ornamentam uma cama macia para a cantora. É, como anotou o “Clarín”, “um “fraseio de Bossa Nova com ausência de falsete, uma espécie de sussurro calmo que repousa sobre a suave melodia de acordes de piano”.
– Queria que o disco soasse como os artistas que gostamos. Há muito de Milton e Djavan. Crescemos com a música deles. E seguimos escutando. Fora dos palcos, Araceli preside a Fundação Mercedes Sosa, na missão de levar adiante o legado da avó. Tarefa tão importante quanto árdua.
– É muito difícil. Sofro. Nem sei como se diz em português... Mas, uma vez que consiga atingir dois ou três objetivos, bom, espero que outros tomem a presidência da fundação, porque eu não posso mais. Nesse momento, na Argentina, há ao redor de 15 escolas de jardim de infância que se chamam Mercedes Sosa. E por iniciativa de cada comunidade. Colaboramos e acompanhamos como podemos. As crianças e os adolescentes conhecem a música e a história de Mercedes. E, a partir da história, têm uma realidade histórica de nosso país, do nosso continente. É muito forte. Isso tem a ver com a nossa identidade. Aí é onde desfruto, onde vejo que a fundação está cumprindo o seu papel, que é difundir o legado de Mercedes e da cultura latino-americana, porque era o que minha vó fazia também. Ela sempre estava rodeada de pintores, escultores, bailarinos, escritores. Eu gosto, mas sofro muito, muito.
Um lugar pleno de arte e felicidade
De repente, a multidão se recolheu. E a exuberância da cidade se fez silenciosa sob o luar que encantou turistas, gente da terra e poetas como Carriço. Em Arraial, durante a pandemia, dois amigos se refugiaram num estúdio caseiro, fazendo da própria arte uma proteção da alma contra a amargura, o distanciamento e a solidão. “Linha divisória”, “A bossa do Arraial e o mar”, “Samba do apartamento”, “Num beijo” e “Pitangueira” são as canções de Junior Carriço que receberam novos timbres e ritmos sob a produção de João Pires. Daí nasceu o EP “Carriço no Bunker do João”, lançado em 2022, mesmo ano em que são comemorados os 110 anos de Victorino Carriço, também conhecido como Santinho. Enquanto fazia o lançamento do projeto, fruto do talento que vem de sangue, Junior esteve envolvido em dezenas de homenagens prestadas ao autor dos hinos de Cabo Frio e de Arraial, entre tantos outros.
– O poeta que habitou esta casa, que morou aqui, meu avô, foi meu pai também. Esta casa: plena de arte, felicidade, afeto, sonhos, ideias, de uma visão de mundo cosmopolita aberta, feliz – declarou Junior, diante da Casa da Poesia, na Praia dos Anjos, para documentário gravado pela Prefeitura de Arraial do Cabo.
E o que vem pela frente? Do futuro ninguém sabe, mas, pelo menos, que se faça a vontade de Mercedes Sosa e Victorino Carriço: música não pode faltar. Na Praia do Forte, seus netos estarão em casa, mais uma vez – e, certamente, sairão com inspiração para encurtar fronteiras e produzir outras canções. – A todo tempo, Junior me fala: “Existem músicas, existem músicas!”. Já vão vir outras. Estou segura disso – avisa Araceli.
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