Cardoso da Fonseca, o poeta do Porto do Carro
Escritor que fez da poesia um gesto de "amor a tudo que é simples e belo" tem trajetória que ajuda a contar a origem do bairro cabo-friense
Os dedos de Luiza escorregam com facilidade pelas primeiras páginas do livro. É bem no início que está o poema “Amar”. “Amar é pra mim, querido, te entregar / minha vida, meu ser e juntos caminhar: / é contigo lutar, é contigo vencer!”, declama com entusiasmo, convicção, a voz firme e empostada. Logo abaixo do texto, a assinatura: Rio de Janeiro, 13/12/62. Luiza Caetano Leão da Fonseca.
Naquele ano, Luiza e o poeta cabo-friense Antenor Cardoso da Fonseca (1919-2007), conhecido apenas como Cardoso da Fonseca, começaram a namorar, depois de se conhecerem nos corredores da antiga Faculdade Nacional de de Filosofia, na Avenida Presidente Antonio Carlos, no Rio de Janeiro. Foi o início de uma vida compartilhada de amor. Amor às letras, à família, ao país. Amor que está em todas as páginas da obra que Luiza vai folheando — trata-se de uma ode de Cardoso da Fonseca a cidades do estado do Rio — enquanto revisita memórias que lhe fazem vibrar.
— E ele fez questão de colocar o meu poema no início do livro — conta, sem esconder o sorriso, a senhora de 90 anos, ao lado da filha Ana Luiza.
“Canto Azul de Amor, de Mar e de Sol à Cultura, ao Turismo e à Ecologia da Região dos Lagos e Litoral do Norte Fluminense, em Noite de Luar” faz parte do vasto acervo do Sebo do Lanati. Não por acaso. A história do poeta passa pela origem do Porto do Carro, onde está localizado o sebo, que recentemente inaugurou o espaço Cardoso da Fonseca em homenagem ao escritor. Cardoso da Fonseca era filho de Antônio Luiz da Fonseca, um português que chegou ao Brasil no início do século 20 e cujo espírito empreendedor fez nascer a então tradicional Olaria Fonseca, que explica o nome dado orinalmente ao lugar: bairro Fonseca — depois, os moradores passariam a chamar o lugar de Porto do Carro, assim como na área que pertence a São Pedro da Aldeia.
Ainda criança, segundo pesquisa que faz parte do memorial do Sebo do Lanati, Cardoso da Fonseca foi tangedor de animais na olaria do pai. Aos 15, caixeiro de vendas e, aos 17, empregado de armazém em Niterói. Foi aos 20 anos que escreveu o primeiro livro de versos: “Cantando na Mocidade”. Mas no meio do trabalho, escritos e leituras havia a guerra. Em 1942, serviu na base militar de Niterói, pertencendo ao Corpo Expedicionário Brasileiro. Só não foi enviado ao conflito contra a Alemanha nazista pois contraiu pneumonia, tendo que ficar internado na época.
Décadas depois, em 1961, veio seu grito de indignação com “Cantos Revolucionários”. Cardoso da Fonseca foi reconhecido como poeta de talento e escritor de grande capacidade intelectual. O historiador Pierre de Cristo, que colabora com a pesquisa para o memorial no Sebo do Lanati, encontrou nos acervos da Biblioteca Nacional uma carta redigida por Jorge Amado ao escritor Nelson Werneck Sodré. Nela, um pedido para que o amigo avaliasse o livro do poeta cabo-friense.
“Meu caro Nelson, os amigos que levam este bilhete são líderes sindicais e acompanham o poeta Cardoso da Fonseca, cujo primeiro livro está a sair. Procuram-me eles para que eu opinasse sobre o livro do poeta mas o fizeram em momento em que estou seguindo para a Bahia, impossibilitado de atendê-los no prazo rápido em que eles desejam. Pediram-me eles então uma apresentação para você, o que faço com prazer. Creio que um poeta saído dos meios sindicais só pode merecer o interesse de escritores como você e eu. Grato pela atenção que você lhes dispense, sou seu velho admirador e amigo”, escreveu Jorge Amado.
Suas qualidades eram exaltadas pelos conterrâneos. Escreveu Célio Mendes Guimarães: “Cardoso da Fonseca trata-se de um dos mais eruditos poetas cabo-frienses, com inúmeras produções de sobressaído valor literário!”, adjetivou em texto publicado em “Canto Azul de Amor, de Mar e de Sol à Cultura, ao Turismo e à Ecologia da Região dos Lagos e Litoral do Norte Fluminense, em Noite de Luar”. Em texto de orelha do mesmo livro, o jornalista e sociólogo José Correia Baptista arrematou desta forma:“Cardoso da Fonseca nos diz que o poeta pode ajudar a transformar sua cidade e amplificar a luta, porque ela é bela e boa para todos. Numa passagem de ‘Canto azul’, Cardoso da Fonseca reafirma sua inspiração e seu partido: ‘o poeta ama o que é simples, formoso, singelo, a poesia e tudo que é belo’”.
O poeta da
palavra de incentivo
Assim como a poesia, as palavram de incentivo e otimismo vinham com naturalidade para Cardoso da Fonseca.
— Ele parava você no meio da rua e dizia: ‘olha, isso que você está pensando vai dar certo, já deu’. Uma gracinha — recorda Ana Luiza.
— Era muito comunicativo. Falava poema para todo mundo. Ele transmitia isso para todas as pessoas que tinham contato com ele — continua Luiza, concordando com a filha.
A docilidade, no entanto, dava lugar à voz de protesto quando se deparava com injustiças sociais, sobretudo durante o regime militar.
— Ele foi muito censurado. Houve até pessoas que ameaçaram prendê-lo, pois falava muito do regime, no “regime malvado”, que não aproveitava o talento das pessoas e que condenava muita gente. Cardoso da Fonseca era muito humano e amava muito as pessoas. E era um indignado. Era a favor do povo, queria colocar o povo à frente de tudo — explica Luiza. — Concatena muito com esse tempo de resistência que estamos vivendo — reflete a filha Ana Luiza, em seguida.
Outra característica marcante de Cardoso da Fonseca era seu incentivo ao trabalho de outros escritores da região. O historiador Pierre de Cristo, em pesquisar na Biblioteca Nacional, descobriu que o poeta trabalhou, na década de 1970, no jornal O Fluminense, onde assinou a coluna “Arte e Literatura”.
— Na coluna, citava poetas regionais, como Casimiro Franco de Oliveira, Santana da Fonseca, entre tantos outros poetas de Campos, Arraial, São Pedro. Ele tinha a função de fazer o resgate desses poetas — comenta Pierre.
Bairro Fonseca:
um resgate histórico
Com auxílio de Pierre, Fabio Lanati, dono do Sebo do Lanati, tem ampliado a pesquisa sobre a importância do poeta e de sua família para a história do bairro e de Cabo Frio.
— Um anuário do Rio de Janeiro, de 1922, mostra a importância da Cerâmica Fonseca para o município na época. As casas eram cobertas e edificados com tijolos e telhas fabricadas na olaria. Toda produção era feita aqui, inclusive a extração de barro — conta Fabio Lanati.
Hoje, na Avenida Wilson Mendes, quem passa pelo terreno da antiga olaria encontra apenas uma chaminé, num terreno vazio com vegetação alta. Durante os esforços de pesquisa, Fabio conseguiu uma relíquia: duas telhas antigas com a inscrição original da cerâmica, que ele ainda pretende envernizar para colocação à exposição no sebo.
— Foi essa olaria que criou o topônimo bairro Fonseca — reforça Pierre de Cristo.
Já o nome Porto do Carro, provavelmente, veio por conta de um porto que ficava bem depois de onde hoje se localiza a Inter TV.
— Essa outra parte era denominada Porto do Carro. Enquanto isso, o nome do bairro Fonseca foi se perdendo, enquanto o número de moradores aumentava. Não há um documento que indique que realmente o nome se originou desse porto. É difícil encontrar esse tipo de arquivo. Mas, dentro da oralidade, podemos perceber que o nome ‘Porto do Carro’ teve origem ali — explica Pierre de Cristo.
Estudantes conhecem
o legado do poeta
Em ação de contrapartida de projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc, o Sebo do Lanati realizou a distribuição de livros para a Escola Teixeira e Sousa, no Porto do Carro. Entre os quas 200 livros entregues havia também a obra do poeta do bairro. A ação teve o apoio do grupo Flores Literárias. Também houve palestra sobre Cardoso da Fonseca e a história do Porto do Carro, com participação das familiares do poeta.
— Gostei muito do interesse demonstrado pelos alunos. Eles foram tão simpáticos, tão curiosos pela história do Cardoso da Fonseca — elogia Luiza.
De tal forma, com a história resgatada e transmitida à nova geração, o legado do poeta continua vivo, assim como o amor que move a poesia.
— Eu o amei de paixão. Hoje em dia, o pessoal ama aqui, ama ali. Não. Somente Cardoso da Fonseca foi o meu amor na vida — declara-se Luiza Caetano Leão da Fonseca.
SERVIÇO. O Sebo do Lanati fica localizado à Rua Telles Candido Cardoso 36, no Porto do Carro. A sala tem cerca de 6.500 livros.
Confira abaixo a edição especial de 406 anos de Cabo Frio produzida pela Folha. O jornal está nas bancas. Prestigie seu jornaleiro! Banca é lugar de cultura!
Saiba Mais
- Academia Cabo-friense de Letras carrega o legado de Teixeira e Sousa há quase meio século
- Sebastião Lan: símbolo da luta pela reforma agrária
- Boliche da Francisco Mendes: onde a juventude de Cabo Frio se encontrava