As memórias de quem acompanhou de perto o caso Ângela Diniz e Doca Street
Folha ouviu personagens sobre a morte da socialite mineira e os dois julgamentos do assassino confesso; história teve Búzios e Cabo Frio como cenário
Parecia ser mais uma ocorrência de violência doméstica à qual o inspetor de polícia Edésio da Costa estava acostumado em anos dedicados à profissão. Naquela noite de 30 de dezembro de 1976, a Região dos Lagos estava cheia de turistas, às vésperas do Ano Novo, quando o policial civil foi chamado até a Praia dos Ossos, em Búzios, então Terceiro Distrito de Cabo Frio, para registrar o assassinato de uma mulher que havia sido morta a tiros pelo namorado, após uma briga potencializada por muitas doses de vodca.
Somente na volta para a delegacia, Edésio, à época com 32 anos, começou a se dar conta que se tratava de um caso diferente daqueles os quais estava acostumado a desvendar. O delegado avisara-lhe que o telefone não parou de tocar em busca de informações, em um período em que computadores e internet só existiam em filmes de ficção científica.
O motivo era a notoriedade dos envolvidos. A vítima, brutalmente assassinada com quatro tiros de pistola no rosto, era a socialite mineira Ângela Diniz, conhecida das páginas de colunas sociais como a ‘Pantera de Minas’; o algoz, também uma figura carimbada das altas rodas da sociedade, o playboy Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, morto de infarto, aos 86 anos, no último dia 18.
Nos anos seguintes, o feminicídio [termo que não existia à época] de Ângela se tornaria um dos casos mais emblemáticos da historiografia policial e jurídica brasileira. Com a experiência de ter atuado em casos igualmente rumorosos, como o assassinato da dançarina Dora Vivacqua, a Luz del Fuego, em 1967, Edésio acompanhou do início ao fim a investigação e, posteriormente, os dois julgamentos do crime ocorrido em solo buziano.
– Por acaso, eu estava na delegacia lotada. Era verão, a cidade estava cheia. Foi quando eu recebi um telefonema dizendo que um homem tinha matado uma mulher em Búzios. Eu me desloquei para lá. E isso, na minha profissão, era normal. Só que a imprensa deu uma ênfase muito grande. Foi uma comoção geral, com a imprensa toda direcionada para Cabo Frio, porque eles eram do high society – relembra Edésio, hoje aposentado, aos 76 anos, para a Folha.
Abordado inúmeras vezes por repórteres naquele período, Edésio sempre se esquivou de entrevistas. Da mesma forma procedeu a professora Mariza Sidaco, que se negou a conversar com a repórter Glória Maria, da TV Globo.
Isso porque, em 1981, Mariza foi a única mulher a tomar parte no júri do segundo julgamento, que resultou na condenação de Doca a uma pena de 15 anos de prisão. A docente, que hoje está com 80 anos, rememora que, antes da recusa em revelar à jornalista global o voto dado no Tribunal, em Cabo Frio, chegou a ter a presença no júri questionada pela defesa do playboy paulista, pelo fato de seu marido ter atuado no processo como tradutor juramentado da alemã Gabrielle Dayer.
A estrangeira era apontada como a pessoa com quem Ângela flertara na praia, horas antes de ser morta. O pretenso envolvimento entre as duas foi usado como pretexto pelos advogados de Doca para descredibilizar o comportamento da vítima e torná-la ‘ré’.
A estratégia não convenceu Mariza, que votou pela condenação. A professora aposentada revela que, além da brutalidade do crime em si, cometido por motivo torpe na sua opinião, levou em conta o perfil de ‘bon vivant’ do assassino confesso, que não tinha ocupação fixa. Todo o contexto a fez avaliá-lo como “mau exemplo para sociedade”.
Por questões éticas, durante anos, preferiu manter o voto em sigilo. Um dos motivos foi por consideração ao pai de Doca, que chegou a visitá-la antes do julgamento. Mariza garante que não houve qualquer tentativa de intimidação. Pelo contrário, a professora recebeu de presente um livro escrito pelo advogado de defesa, o renomado criminalista Evandro Lins e Silva, autor da controversa tese de ‘legítima defesa da honra’, utilizada para justificar o crime e livrar seu cliente da prisão, o que chegou a ocorrer no primeiro julgamento, em 1979.
– Ele, quando esteve na minha casa, não me pediu nada, só me deu o livro, fazendo as suas considerações. Pediu permissão para me fazer uma visita. Fez o papel de pai, né? Ele veio reforçar a defesa, mas não me pediu nada. A única coisa que ele pediu foi que eu lesse o livro – afirma.
Em agosto de 1979, a anistia ampla, geral e irrestrita trazia de volta ao país políticos e intelectuais que viram na fuga para o exílio a única saída para escapar da repressão política. Os ventos trazidos pela abertura, mais libertários, não foram suficientes para arejar a sociedade, tampouco a Justiça.
No primeiro julgamento, em uma Cabo Frio festiva e pró-réu, com direito a faixas de apoio (“Doca, Cabo Frio está com você, dizia uma delas”), a tese de ‘Vênus lasciva’ imputada à Ângela prosperou e Doca Street recebeu uma pena de dois anos de prisão com direito a sursis. Na prática, ele saiu do tribunal livre e envolto em aura de herói nacional. O veredicto surpreendeu o próprio Doca que, em 2006, lançou um livro de memórias, ‘Mea Culpa’, contando sua versão do caso.
– Fiquei com vergonha de ser absolvido. Não entendi. Também não entendi por que era aplaudido e por que chovia mulher. Eu saía com elas, não resistia – testosterona no máximo –, mas não entendia – declarou à Folha de S. Paulo, por ocasião do lançamento do livro.
O resultado enfureceu o movimento feminista. A Promotoria recorreu ao Tribunal de Justiça, e novo júri foi marcado. O segundo julgamento foi palco da atuação de figuras históricas do Direito cabofriense, como o promotor Fador Sampaio, já falecido; e o advogado Paulo Roberto Pereira Badhu, que atuou na defesa do réu.
A pressão da opinião pública e a articulação de núcleos do movimento feminista, sobretudo em Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro mudaram completamente o cenário para o segundo julgamento, conforme atestou o próprio Badhu, em uma entrevista que fez parte da série de podcasts ‘Praia dos Ossos’, da Rádio Novelo.
O clima outrora festivo tornara-se hostil, com a presença ostensiva de militantes e da imprensa. Segundo o jurista, pareciam ‘dois Brasis’ diferentes, entre um julgamento e outro, com uma diferença que foi de pouco mais de dois anos entre eles. No fim das contas, Doca foi condenado a 15 anos de prisão, dois quais cumpriu três em regime fechado; dois no semiaberto e o restante, em liberdade condicional.
– Na segunda [vez], nós já entramos condenados. Nós já entramos condenados. Porque no primeiro julgamento [houve] uma multidão favorável. “Sorte, Doca. Sorte, homem.” Na segunda, totalmente era o contrário – relatou.
O contexto nacional ajudou a formar a opinião pública contra Doca. Os casos de violência contra a mulher surgiam por toda parte entre 1979 e 1981. Em Goiânia, São Paulo e na Belo Horizonte natal de Ângela Diniz. Alguns deles de grande repercussão, como o assassinato a tiros da cantora Eliane de Grammont pelo ex-marido, o cantor popular Lindomar Castilho, em março de 1981.
A pedagoga e escritora paulista Schuma Schumaher esteve no Rio uma semana antes do segundo júri de Doca para se reunir com feministas cariocas e pichar muros com dizeres garrafais: “Quem Ama não Mata”.
Ela não chegou a vir a Cabo Frio, mas a organização da qual fazia parte participou de toda a articulação. A campanha ganhou corpo e chegou a dar nome a uma minissérie da TV Globo. Schuma, que foi vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura em 2008, pelo livro ‘Mulheres Negras do Brasil’, é enfática em afirmar que a mobilização, associada à maior liberdade de expressão no período, foi decisiva para que Doca Street fosse condenado.
– Não tenho a menor dúvida de que foram as feministas, também com muita contribuição da mídia, naquele momento. E retoma um grande debate que é a defesa da honra. No Código Penal, em nome da honra se matava e se exterminava as mulheres. Isso polemizou na sociedade brasileira, porque antes se conduziu de uma maneira que ela [Ângela] era uma megera e ele [Doca] um coitadinho, que a matou de tanto sofrer por amor.