Aconteceu em um mês de 2023. “É dodói no vaso, mamão?”, perguntou minha irmã, então com seus 4 anos de idade, enquanto eu despejava Pinho Sol no vaso sanitário. Diante da pergunta incomum, diria mesmo original, assustei-me um pouco, até entender o que poderia ter motivado.
Pela manhã, eu havia limpado a ferida do joelho dela com álcool 70, ultimando com Rifocina sódica, para ajudar na cicatrização. Estava explicado. Aquela cabecinha ainda tão rudimentar, porém brilhante, concebera uma analogia: o desinfetante e o cicatrizante têm cores muito similares —logo, a privada só podia ter um dodói também.
Lembro sempre desse episódio quando ouço alguém falar sobre a sagacidade das crianças, que fazem tudo quanto são observações inesperadas, capazes de nos provocar risos ou nos fazer refletir. São as famosas tiradas infantis, que, engendradas por cores frequentemente subtraídas da aquarela da adultez, alegram a vida.
Faltava-me isso quando quase acreditei que escrever seria impossível. Embora lesse, sentisse, embarcasse nas histórias, pensava que não tinha talento para a imaginação e jamais conseguiria levar uma história adiante. Até que conheci Dalton Trevisan (1925-2024), xamã do escrever miúdo, mas sem perder a genialidade.
Compreendi que o excesso não era garantia de um bom texto. Muito pelo contrário, muitas vezes assassinava-o. Mas a questão da invenção permaneceu. E é aí que entram as crianças no balaio, especialmente a minha. Aquele garoto que um dia fui e que haveria de estar vivo em mim. Assim, percebi que, mais do que ser criança, é aquela pesquisa externa, a curiosidade por outras histórias que não apenas as nossas, que também alimenta o nosso imaginário.
O interesse pela história daquela senhora do ponto de ônibus que, ignorada por todos, me fez sentar ao seu lado e ouvir que perdera a chave de casa e, sem que o vizinho a acudisse ou qualquer pessoa passasse, ela mesma resolveu pular a janela e entrar. Lá dentro, ia me dizendo, após ligar para o chaveiro, achou o preço muito caro, então retirou sozinha a porta e trocou a fechadura.
“Assisti uma gravação de um rapaz ensinando no YouTube”, disse ela, que deveria ter entre 60 e 70 anos. “Hoje o YouTube está roubando o emprego das pessoas”, emendou, aos risos, lembrando que também havia utilizado o mesmo método para trocar a resistência do chuveiro.
Enquanto me contava, foi impossível não pensar: “Que senhorinha mão de vaca!”. Por outro lado, ao mesmo tempo, me ofertava uma lição e uma história saborosa.
Quero sempre ser assim, interessado em ouvir a história do outro e capaz de, como Helena, enxergar correspondência entre o Pinho Sol e a Rifocina sódica. Quero todas as cores da infância, autêntico antídoto contra os machucados que, mais e mais, vão surgindo durante a vida.