Popularmente chamada de Anjo Caído, uma estátua de nove metros de altura, de asas abertas sobre as águas do Canal Itajuru, no Portinho, marca um período importante da Região dos Lagos. No início do século XIX ocorreu a expansão da atividade salineira, com o fim do monopólio por parte da coroa portuguesa, tornando assim a exportação de sal a maior fonte econômica da região, sobretudo para Cabo Frio.
A alta taxa de salinidade da Lagoa de Araruama favorecia a extração de sal, que atraiu diversos empresários da época — especialmente a partir de 1824, com a instalação da salina de Perynas, pelo alemão Luiz Lindenberg. Foi a primeira concessão para indústria de sal no Brasil.
Com intuito de melhorar o escoamento do sal, o engenheiro francês Leger Palmer fez a primeira grande intervenção que mudaria os rumos da cidade cabo-friense.
Atento às necessidades locais, o engenheiro francês abriu uma passagem artificial no Canal do Itajuru, o Canal Palmer, facilitando a navegação de inúmeras embarcações carregadas de sal, além do transporte de passageiros.
“A obra ocorreu entre 1875 e1880, numa extensão de 2274m, com 28m de largura, que culminou em três divisões do canal: a Ilha do Anjo, onde atualmente existe um condomínio de alto padrão, a Travessa do Saco Marta Figueira, no trecho com várias estacas de madeiras que até hoje são usadas pelos pescadores para pesca de camarão, e a Ilha da Conceição, onde funcionava uma salina de mesmo nome e foi base para uma oficina de companhia de navegação de Leger Palmer”, conta o historiador Luiz Guilherme Scaldaferri.
O engenheiro investiu ainda na dragagem do canal para dar mais profundidade e torná-lo navegável. O pioneirismo de Palmer foi eternizado em 1904, por sugestão do vereador Antônio Anastácio Novellino à Câmara Municipal de Cabo Frio, com a nomeação do trecho com a alcunha de seu criador: Canal Palmer. De acordo com o historiador José Francisco de Moura, a estátua conhecida hoje como Anjo Caído foi erguida em 1917, e não em 1907, como costuma ser divulgado. Ela celebra as obras viabilizadas por Leger Palmer.
"Durante dezenas de anos foi divulgado que 1907 foi o ano de construção da estátua. Mas em 1907 foi a guerra entre Liras e Jagunços [grupos que rivalizavam na política cabo-friense]. Houve pessoas mortas, casas incendiadas, pessoas assassinadas. A sede da Lira foi incendiada com cem pessoas dentro. Pessoas confundiram no fundo. O governador mandou um número enorme de policiais para a cidade. A Festa do Divino foi suspensa. Não haveria cabimento a estátua ter sido erguida em 1907. Eu achei estranha essa data e fiquei procurando, até que achei informações em um jornal antigo sobre essa obra, que foi feita pela empresa que realizou a desobstrução do canal. A obra foi como um prêmio em comemoração ao final das obras. A estátua só passou a chamar de Anjo Caído nos anos 1960, quando envergou um pouco graças à ação do vento. Descobri então quando ela foi feita. Começou a ser construída em 1917, sendo entregue em 1918. Na verdade, o Anjo Caído é uma estátua que representa Niké, a deusa grega da Vitória", diz o pesquisador, que é coautor do livro "História de Cabo Frio - dos sambaquieiros aos cabo-frienses".
Leger chegou ao Brasil aos 21 anos, para instalar uma máquina a vapor em um engenho de cana de açúcar, em Macaé, no Norte Fluminense. Adaptado ao país, atuou em diferentes áreas, como concessão de patentes industriais e comerciais; salicultura; navegação lagunar e oceânica.
Durante muito tempo, o monumento serviu como farol para as balsas que ali trafegavam. À noite, um lampião era aceso nas mãos da deusa, para orientar os navegantes. Mas o Anjo Caído sinalizava também um futuro promissor da Região dos Lagos.
Entretanto, na década de 1930, o canal voltou a sofrear com o assoreamento. Anos depois, a questão foi avaliada pelo Departamento Nacional de Portos e Navegação, que decretou inviável a desobstrução em virtude do alto investimento para realizar outra dragagem.
Em contrapartida, o progresso urbano se alargava às margens do canal. Isso ficou evidente após a inauguração da Ponte Feliciano Sodré, em 1926, construída depois da antiga ponte de ferro desabar nas águas do canal, em 1920. A ponte deu acesso a pelo menos cinco bairros com o centro da cidade. À época, foi um propulsor do desenvolvimento populacional e econômico do município.
Se por um lado os avanços técnicos melhoraram a vida dos cidadãos, por outro, prejudicaram e muito o meio ambiente. Até meados dos anos 1990, a exponencial especulação comercial e imobiliária no entorno da lagoa motivou um processo de eutrofização, ou seja, o crescimento exagerado das algas que se alimentam de substâncias orgânicas e que diminuem a oxigenação da água e, consequentemente, causando um grave desiquilíbrio das espécies do sistema lagunar. Isso ocorreu principalmente porque todo o esgoto era despejado in natura na lagoa.
Somente a partir de 1998 iniciou-se um plano gradativo de recuperação, por meio dos investimentos da concessionária de serviço de água e esgoto, Prolagos, que atua em cinco municípios da região: Arraial do Cabo, Cabo Frio, Búzios, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia. Em 25 anos, a Prolagos aplicou mais de R$1,4 bilhão em saneamento básico, representando mais que o dobro de investimentos realizados por habitante, do que a média nacional, de acordo com o Instituto Trata Brasil. Hoje, 80% do esgoto da região é coletado; e 100% do material captado é tratado em umas das sete estações operadas pela companhia.
Por ser uma área de grande biodiversidade e de disputa de interesses públicos e privados, que impactam diretamente na sociedade, constantemente a Lagoa de Araruama é pauta nos noticiários. Dessa vez, o canal do Itajuru ganhou destaque, após mais de cem anos da abertura do trecho que liga a lagoa com o mar, uma nova obra atinge os municípios no entorno da laguna.
Há pouco mais de um ano, o governo estadual disponibilizou R$ 22 milhões para dragar 8km de extensão do canal e retirar cerca de 335 mil metros cúbicos de sedimentos que impediam a navegação e prejudicam a saúde da lagoa, causando prejuízos ambientais, sociais e econômicos; os recursos utilizados são do Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano (Fecam).
Em paralelo, desde 2022, a concessionária Prolagos iniciou a etapa de conclusão do cinturão da lagoa, investindo mais de R$50 milhões na implantação de 26 km de rede coletora, somados aos 38 km que já estão em operação.
O objetivo é direcionar o esgoto que sai dos imóveis, para as unidades de tratamento, evitando a poluição da lagoa. Com mais de 70% do processo concluído, por parte do Estado, os resultados da obra já são visíveis para quem convive diariamente com a lagoa.
“Há alguns anos, as ações da Prolagos vêm demonstrando melhorias para a pesca artesanal. Esperamos que tanto a dragagem feita pelo governo quanto as barreiras de esgoto da Prolagos ajudem ainda mais no resultado do nosso trabalho”, comenta Cícero Vanderley Neto, presidente da Colônia Z-29, em Iguaba Grande.
O vice-governador do estado do Rio e secretário estadual do Ambiente e Sustentabilidade, Thiago Pampolha, afirma que “a dragagem regular do Canal do Itajuru garante a troca hídrica essencial para a manutenção da flora e fauna e beneficia as atividades pesqueiras e de turismo".
As falas corroboram com os recentes dados apresentados pelo Grupo de Estudos da Pesca – Gepesca, da Universidade Veiga de Almeida. O Programa de Estatística Pesqueira da Lagoa de Araruama observou que de janeiro de 2022 a abril de 2023 foram pescados 396 mil quilos de peixes, gerando 7.334 postos de trabalhos diretos e indiretos pela cadeia produtiva pesqueira da lagoa.
“Enquanto muitas regiões de pesca lagunares no Brasil registram declínio na atividade, na Lagoa de Araruama a produtividade foi recuperada e se mantém. Uma das constatações do programa é o aumento da eficiência gradual do sistema de coleta e tratamento dos efluentes pós privatização dos serviços de oferta de água e saneamento, associado a criação do Consórcio Intermunicipal Lagos São João e o Comitê da Bacia Hidrográfica Lagos São João, que efetivaram a antecipação dos investimentos em saneamento, fazendo com que a lagoa gradativamente recupere a sua saúde”, pontua Eduardo Pimenta, coordenador do Gepesca e presidente do Comitê de Bacia Hidrográfica Lagos São João.
Há mais de um século, o canal Palmer abriu novos caminhos para a Região dos Lagos. Na atualidade, o maior desafio é garantir que, assim como o encontro do mar e da lagoa, passado e futuro naveguem em harmonia sob as águas claras e renovadas da Lagoa de Araruama.