Sabe aquele sonho que você tem desde criança, mas acaba desistindo dele porque acha que é impossível? Pois David Richer não sabe o que é isso. O jovem aldeense, que estudou em escola pública praticamente a vida inteira, e se formou médico em 2021 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/Macaé), acaba de ser aceito para o mestrado em saúde pública em uma das melhores universidades do mundo. Fundada em 1636 na cidade de Cambridge, a Universidade de Harvard é a mais antiga e conhecida instituição de ensino superior dos Estados Unidos. De acordo com pesquisas, da média anual de 60 mil candidatos inscritos, apenas 6% conseguem vaga.
— Minha base é de escola pública. Fiz o ensino fundamental na escola do bairro onde cresci, Escola Municipal Luiza Terra de Andrade, na cidade de São Pedro da Aldeia. Ali, tive professores muito queridos que me incentivaram desde cedo. No ensino médio, estudei em diferentes escolas porque em algumas eu não tinha professores para todas as matérias. Então eu buscava uma escola que tivesse uma grade curricular mais completa. Comecei estudando no Colégio Estadual Miguel Couto, em Cabo Frio, e depois fui para o Colégio Municipal Francisco Porto de Aguiar, e o Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), em Arraial do Cabo. Terminei o ensino médio no CIEP 146 Professor Cordelino Teixeira Paulo, em São Pedro da Aldeia. Apesar de todo meu esforço, sentia que minha base não era suficiente para ser aprovado no curso de Medicina. Foi quando ganhei uma bolsa na Escola Canto dos Pássaros e no Futuro VIP (IGPI), ambas em Cabo Frio. Depois que me formei no ensino médio em 2013, passei um ano inteiro estudando bastante até conseguir ser aprovado no vestibular em 2014 - contou David durante uma conversa com a equipe da Folha.
Ao longo de sua história escolar, ele lembra que participou de olimpíadas científicas e concursos de redação, obtendo destaque em algumas premiações a nível nacional e internacional.
— Com o incentivo de amigos e professores e com o apoio dos meus pais, fiz cursos de idiomas, como inglês, espanhol e francês, que foram essenciais para me abrir várias portas.
Folha - Estudar em Harvard sempre foi um sonho? Quando e como ele surgiu?
David - Sempre foi um sonho. Mas eu compartilhava apenas com os amigos mais próximos e alguns professores. Na verdade, eu tinha vergonha de revelar que queria estudar medicina e as pessoas não acreditarem e rirem de mim. Médico? Vindo de família humilde? Como iria ser aprovado em um vestibular tão competitivo? Como iria me manter durante o curso? Imagine então falar que sonhava em estudar em uma das melhores universidades do mundo como Harvard? Por isso eu mantinha esse sonho em segredo. Mas ele existia, ele sempre existiu.
Folha - E por que o mestrado de saúde em Harvard? Qual sua meta profissional?
David - Desde meados do curso de Medicina que venho pensando nesse mestrado. Quando fui presidente do Centro Acadêmico e presidente da Liga Acadêmica de Psiquiatria e Saúde Mental, tive contato muito próximo com o movimento estudantil. Depois do suicídio de dois colegas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ-Macaé), estive envolvido na luta por políticas voltadas para a saúde mental dos estudantes. Com muito trabalho coletivo, tivemos algumas conquistas, como abordar mais o assunto desde a primeira semana de aula, criar um jornal universitário como uma atividade de lazer, e construir uma rede de apoio de saúde mental. Durante o curso também, tive uma vivência rica no Sistema Único de Saúde (SUS) nos hospitais em que estagiei, e vi de perto como uma boa gestão e políticas públicas de qualidade poderiam transformar realidades. Meu objetivo com esse mestrado é desenvolver habilidades e me capacitar tecnicamente para estar em uma posição de liderança na saúde pública no Brasil, especificamente no campo da saúde mental. Quero muito contribuir para melhorar o cenário da saúde mental no Brasil.
Folha - Quando e como você começou a correr atrás do seu sonho de estudar em Harvard?
David - Após terminar o ensino médio, apliquei para biologia para algumas universidades nos Estados Unidos (EUA), onde, para fazer medicina, é necessário ter uma graduação de quatro anos. Fui aprovado para biologia em três universidades, mas não com bolsa integral. Por esse motivo e pelo curso de medicina nos EUA ser bastante caro, decidi me formar médico no Brasil e depois fazer um mestrado/doutorado ou residência médica fora. Entrei na UFRJ em 2015 com essa meta em mente. “Vou estudar fora, é apenas uma questão de tempo”, eu pensava. E trabalhei muito para que esse sonho se tornasse realidade. De fato, toda essa trajetória até aqui foi fruto de muita luta. Recordo, por exemplo, que meus pais pagavam meu curso de inglês com muita dificuldade e houve momentos que achávamos que não conseguiria continuar as aulas. Eu saía de madrugada de São Pedro para estudar em Arraial do Cabo e levava comida de casa, porque a escola não oferecia almoço e eu tinha que ficar até de noite para meu curso técnico no IFRJ. Minha mochila vivia muito pesada com tantos livros que tinha que carregar. Para me preparar para o vestibular, acordava às seis da manhã e estudava até altas horas. Na universidade, consegui me custear dando aulas de inglês no tempo vago. Nada foi fácil, sempre tive muitos desafios. Mas no fundo, eu tinha a certeza de que todo aquele esforço, um dia, valeria a pena. E esse dia chegou.
Folha - Quando você fez sua inscrição? Como funciona esse processo?
David - Todo o processo é conhecido como “Aplicação”. São necessários vários documentos, como histórico escolar traduzido, cartas de recomendação de professores, currículo e cartas de intenção. A avaliação do candidato é realizada de forma global. Eles avaliam toda sua história, desde suas notas na universidade até seus projetos na pesquisa científica e seus objetivos de carreira. Depois, uma banca seleciona os melhores candidatos. Nesse mestrado em específico, são selecionados apenas 30 a 40 candidatos do mundo todo. É altamente competitivo.
Folha - Foi quanto tempo esperando a resposta? Em algum momento achou que ela não viria, ou seria negativa?
David - Apliquei em dezembro do ano passado e recebi a resposta agora em fevereiro. Sim, teve um momento em que achei que não seria aprovado. Apliquei para o mesmo mestrado em 2020 e não fui selecionado. Mas a vida é feita de portas que se fecham e outras que se abrem. Eu não desisti do meu sonho. Acho que o mais importante é não desistir. Em 2021, passei três meses em Miami fazendo estágio em Clínica Médica, Neurologia e Psiquiatria. Foi minha primeira experiência internacional. Em 2021 também, fui aprovado para um curso de pesquisa clínica online de Harvard. Em 2022, fui selecionado para trabalhar como pesquisador no Massachusetts General Hospital, um dos hospitais mais importantes do mundo. E agora fui aprovado para o mestrado que eu tanto queria. Foi um passo de cada vez até chegar onde estou.
Folha - O que foi o mais difícil na busca pela realização desse sonho?
David - Acho que o mais difícil nesse caminho são os diversos “nãos” que a gente recebe. Quem não me acompanha de perto pode até acreditar que só coleciono “sucesso”. Mas não. Eu também tive muitas rejeições que foram bem difíceis. Desde não ser aprovado de primeira no vestibular até processos seletivos de bolsas importantes que não ganhei, e minha própria aplicação para o mesmo mestrado em 2020 em que não fui selecionado. Porém, não é sobre o quanto você fracassa, mas sim como você não desiste e passa a usar essas experiências para melhorar cada vez mais. Continuo ainda na realização desse sonho, porque fui aprovado para o mestrado, mas ainda não tenho bolsa. A educação nos EUA é paga na maioria das vezes, e não seria diferente no caso de Harvard. Estou no processo de encontrar e aplicar para oportunidades de bolsas e espero ser selecionado. Os desafios continuam, e continuo batalhando para realizar meus sonhos.
Folha - O que te motivou a continuar na busca desse sonho?
David - O que mais me motiva a continuar na busca pelos meus sonhos é revisitar minhas raízes e ver o quão longe cheguei. Vir de família humilde, onde minha mãe trabalhava como cozinheira e meu pai na coleta de reciclagem, e olhar para onde estou me faz acreditar que posso ir além. Eu também tive muitas pessoas maravilhosas ao meu lado, que foram essenciais para me apoiar e incentivar. Queria aproveitar para agradecer a algumas delas: meus pais (Marta e Eraldo) e minha família, meu irmão Dayvison, avós Joana e Carlito (in memoriam), tias Angélica e Erilda, e primos Dhomini e Diego, que batalharam bastante para que eu chegasse onde cheguei; todos meus professores desde o ensino fundamental e ensino médio até a universidade e também dos cursos de idiomas que eu fiz (destacar alguns deles como Juli Pereira do Luiza Terra; Valdea Abreu, Meyri Serpa e Vanessa Vasconcelos do Miguel Couto; Fernanda Mello e Ana Paula Góes do Francisco Porto; Ivana Ferreira, Deborah Rodrigues e Alessandra Tanos do IGPI; Vanessa Massari e Lilian Boy do meu curso de inglês; e Lilian-Bahia, Joelson Rodrigues, Karla Coelho e Júlio Silveira da UFRJ); a biblioteca Prof. Walter Nogueira em Cabo Frio, onde passei muito do meu tempo estudando, com a bibliotecária Zuleika Crespo; meus amigos (Alex Filipe, Camilla Maia, Ana Catarina e sua mãe Ana Ávila, Débora Bastos, Fernanda Ballaris e Tamiris El-Khouri) por todo incentivo; e por último, mas não menos importante, meu esposo, Rogerio Luz, que sempre está ao meu lado. Muito obrigado a todos vocês por acreditarem em mim!
Folha - O que você diria para quem tem um sonho qualquer, mas desiste porque acha que é impossível?
David - Dizer apenas “não desista do seu sonho” pode parecer uma frase clichê e não muito útil, porque é bem difícil continuar batalhando pelo que você tanto acredita. Eu diria que, além de acreditar em você, cerque-se de pessoas que te estimulem a ir mais longe. Pessoas que estarão com você quando você receber um “Não”. Como mencionei, isso vai acontecer muitas vezes. São portas que se fecham e outras que se abrem. E são nessas portas que se fecham que você vai mais precisar de alguém que fale “Sim, eu acredito que você consegue”. Eu gosto muito de uma frase de um dos meus escritores favoritos, Guimarães Rosa, que usei no meu discurso de formatura: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” Haverá muitos momentos em que você irá pensar em desistir. Mas acredite! Acredite nos seus sonhos e se cerque de pessoas que acreditem em você. Pessoas que vão falar para você tentar novamente. E sou muito grato por ter tido essas pessoas ao meu lado. Com certeza, isso fez toda a diferença para chegar onde eu cheguei. Fez toda a diferença para que meu sonho se tornasse realidade. Para quem se interessar e quiser saber mais da minha história, pode me contatar pelo e-mail [email protected]