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Ypiranga dos Guaranys: o primeiro indígena universitário no curso da água na Região dos Lagos

Pesquisadores revelam preocupação de José Rodrigues Peixoto Ypiranga dos Guaranys com abastecimento da cidade durante seu trabalho na Câmara Municipal

30 outubro 2024 - 13h17Por Lorena Brites

A história de acesso à água própria para consumo na Região dos Lagos passa pela pena de José Rodrigues Peixoto Ypiranga dos Guaranys (1824-1873), nada menos do que o primeiro indígena universitário do Brasil. Ele se formou, em 1850, na Faculdade de Direito de São Paulo, onde chegou a ser colega de turma de José de Alencar, célebre autor de “Iracema” e “O Guarani”. A trajetória desse personagem, que ajuda a contar parte significativa da história do Brasil, foi revelada pelos historiadores Marcelo Sant’Ana Lemos e Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira no livro “O primeiro indígena universitário do Brasil — Dr. José Peixoto Ypiranga dos Guaranys (1824-1873)”. Mais recentemente, os pesquisadores ampliaram as descobertas sobre os caminhos de Ypiranga dos Guaranys na Região dos Lagos do século XIX em “Ypiranga dos Guaranys em Cabo Frio: atuação cultural, política e econômica do primeiro indígena universitário do Brasil (séc. XIX)”. As obras foram lançadas pela Sophia Editora. 

 

Poço de S. Pedro (Rua Dr. Antônio Alves, n.º 73, Centro de São Pedro da Aldeia), ainda preservado

 

– Havia um debate na Câmara para prover melhor higienização nos acessos aos poços artesianos. Ypiranga preocupou-se sobretudo com o seu quinhão: os poços de São Pedro da Aldeia, que ainda eram administrados pela Câmara de Cabo Frio.  Ele estava muito preocupado com o abastecimento da cidade. Não da cidade como um todo, até porque ela era muito grande. Estava mais preocupado com sua localidade – destaca Luiz Guilherme, referindo-se ao fato de que Ypiranga dos Guaranys era natural do aldeamento de São Pedro.

– Cabo Frio, no século XIX, era muito maior do que é hoje. Ou seja, Búzios (emancipado em 12/11/1995), São Pedro de Aldeia (emancipado em 17/12/1892), Arraial do Cabo (emancipado em 13/05/1985) eram parte do município, chamados de freguesias. Inclusive, Araruama (emancipado em 06/02/1859) e parte inclusive de Silva Jardim (emancipado em 08/05/1841) também. Para maior parte dessa região, o procedimento em relação à água era praticamente o mesmo – explica Marcelo Sant’Ana Lemos.

Não se pode deixar despercebido que Ypiranga dos Guaranys era um homem de elite cabo-friense. Além de vereador, foi inspetor escolar, advogado e o primeiro Promotor de Justiça indígena da história do Brasil. Na Câmara, sua preocupação com os poços de São Pedro poderia ter, como pano de fundo, um interesse um tanto quanto particular.

–  Muitos dos poços de São Pedro eram próximos da residência de Ypiranga dos Guaranys. Provavelmente abasteciam sua própria casa e animais de sua propriedade – destaca Luiz Guilherme.

Os pesquisadores explicam que, desde 1615, data de fundação de Cabo Frio, o acesso à água potável conduziu o desenvolvimento do município. Esse foi um dos motivos da transferência do núcleo populacional da Passagem para o Centro. Naquela Cabo Frio do século XIX, vivida por Ypiranga, falava-se sobre a necessidade de proteger as águas dos poços contra impurezas. Construía-se muros, por exemplo, para impedir o acesso de animais.  Além disso, controlava-se o acesso, para evitar poluição. Segundo Luiz Guilherme, fiscais da Câmara iam até as casas para verificar os poços que as famílias tinham nos quintais. Eles colocavam um remédio na água, que, curiosamente, por conta da tecnologia rudimentar, poderia surtir efeito contrário e causar mal aos consumidores. 

– Às vezes, o remédio causava o pior. Há relatos de que tinha gotas de petróleo. Ou seja, as pessoas acabavam bebendo uma água mais contaminada ainda. O remédio matava os vermes da água, mas podia matar o próprio consumidor. Esse petróleo depois foi substituído por querosene. Enquanto isso, uma forma de matar lavas de mosquito era colocar peixes nos poços. Entretanto, os peixes acabavam deixando dejetos nas águas – detalha Luiz Guilherme. 

A preocupação com a questão da água também permeou a legislatura de parentes de Ypiranga dos Guaranys. Seu pai, Joaquim Rodrigues Peixoto, por exemplo, apresentou proposta, no dia 12 de abril de 1853, para cercar o poço do bairro Itinga e fazer uma entrada. Esse poço tinha água límpida e própria para o consumo. A obra demorou dois meses. Segundo Peixoto, a demora foi devido a uma enchente, segundo os pesquisadores constataram nas atas da Câmara. 

“A participação dos Peixoto na vereança se deu em diversos assuntos, mas, de forma ativa, em dois pontos: 1º) o abastecimento de água por meio dos poços da freguesia da aldeia de São Pedro; e 2º) as estradas que ligavam Campos Novos à referida freguesia”, escreveram Luiz Guilherme Scaldaferri e Marcelo Sant’Ana Lemos em “Ypiranga dos Guaranys em Cabo Frio: atuação cultural, política e econômica do primeiro indígena universitário do Brasil (séc. XIX)”.

– Como você levava água para casa no século XIX?  Você colocava água numa barrica de vinho, que era tombada no chão. Depois, com um arco e uma corda, ia rolando aquela barrica até sua casa com água. Isso aconteceu até o início do século XX. A água encanada só vai chegar na Região dos Lagos em 1945, quando a cia. Nacional de Álcalis consegue captar, junto ao governo estadual, a água da Lagoa de Juturnaíba, que, ao ser tratada é distribuída para as cidades de Araruama, Cabo Frio, Búzios, Arraial do Cabo e São Pedro da Aldeia – comenta Marcelo. 


Água e desenvolvimento

Na Região dos Lagos, as cidades banhadas pelas águas do mar e da laguna de Araruama, os indígenas já buscavam fontes de água limpa para o consumo. Em Cabo Frio, há evidências de sítios arqueológicos que comprovam a passagem dos tupinambás há mais de 5 mil anos, e há pelo menos 1.500 anos eles faziam uso da Fonte do Itajuru para abastecerem os seus acampamentos. 

Durante muitos anos, a fonte do Itajuru foi o principal local de aglomeração para saciar a sede da população. Escreveu Meri Damaceno em “Água: seu curso na história”: "Em 1615 para se estabelecer o 1º núcleo urbano de Cabo Frio, no bairro Passagem, foi levado em conta o problema da água potável na região, encontrada apenas na restinga, nas águas correntes da Fonte do Itajuru junto ao Morro da Guia. Graças à excelente água cor de cobre das raízes da Tatagiba foi possível a colonização de Cabo Frio”. 

Mais tarde, cacimbas e poços se espalharam na tentativa de ampliar o abastecimento. Em contrapartida, causaram novo transtorno aos cidadãos, que constantemente conviviam com doenças devido ao acúmulo de dejetos e parasitas nas águas e a falta de tratamento adequada para ingestão.

A única forma existente na época para tratar a água era utilizando um pano de algodão. Essa era a maneira improvisada de filtrar as impurezas. E, em casos mais graves como lodo, colocava-se cinza, cal, cimento ou pedra-ume no fundo das vasilhas. Em seguida passava-se novamente a água para outra vasilha com um pano.

Registros oficiais da Câmara Municipal de Cabo Frio apontam outras  alternativas de garantir o consumo de água seguro à população, como as reformas na Fonte do Itajuru e nos poços, que eram de responsabilidade da casa legislativa. Em 1833, a comissão de Fontes e Poços solicitou ao engenheiro Major Belegard a apresentação de um projeto de melhorias. No entanto, somente em 1847 a obra foi realizada, a mando do então imperador D. Pedro II, na ocasião de uma visita ao município.

Foi construída uma guarita em pedra para proteção da fonte, que funcionou até metade do século XX. Nesse período, Cabo Frio enfrentou diversos problemas urbanos, como a falta de higienização das ruas, o combate às febres e o abastecimento de água. Problemas esses que atingiram diretamente Ypiranga dos Guaranys, filho do capitão de índios Joaquim Rodrigues Peixoto. Apesar das origens, seus pais tinham boas relações e eram considerados “civilizados”, termo usado no processo de desapropriação cultural, ao inserir os indígenas aos costumes “brancos” e “civilizatórios” do período. 

Segundo os autores das obras que retratam a biografia do Ypiranga dos Guaranys, o indígena obteve ascensão por meio da educação e das relações sociais de sua família, que eram proprietários de terras, além de terem exercido relevantes cargos políticos na Região dos Lagos. Aos 22 anos, Ypiranga dos Guaranys cursou Direito na Universidade de São Paulo. Teve uma vida acadêmica efervescente. Liderou diversos debates sobre causas indígenas e ajudou a fundar o Instituto Literário Acadêmico, com diversas publicações. 

No ano de 1850, após se formar na faculdade, mudou seu nome para José Peixoto Ypiranga dos Guaranys, com intuito de reforçar as suas origens indígenas. Teve notório reconhecimento ao assumir a Promotoria de Justiça no julgamento de Manoel da Mota Coqueiro, a Fera de Macabu, considerado um dos últimos casos de condenação à pena de morte do Brasil. Além do judiciário, Ypiranga dos Guaranys também atuou nas cidades de Cabo Frio, Araruama, São Pedro da Aldeia e Macaé, como comerciante, advogado, vereador e até inspetor escolar. 

Ignácia Dias Ypiranga dos Guaranys, casada com José Peixoto Ypiranga dos Guaranys 

 

Pós-Ypiranga

Após seu falecimento, outros avanços técnicos na área de abastecimento surgiram. Em 1894, a Câmara de Cabo Frio autorizou o processo de canalização da água da fonte do Itajuru. A proposta previa a instalação de quatro bicas ligadas à fonte em diferentes pontos da cidade: no Largo de Santo Antônio, na Travessa do Ribeiro, na atual Rua Érico Coelho, e a última ao lado do Prédio Municipal. A obra foi inaugurada anos mais tarde, em 29 de agosto de 1897. Contudo, os parcos desenvolvimentos não acompanhavam a velocidade do crescimento populacional. Por isso, tornou-se cada vez mais comum o uso de poços em residências. 

Em meados dos anos 1950, navios que aportavam no porto da Passagem começaram a distribuir a sobra de água que transportavam durante as viagens. Porém, como nem sempre era quantidade suficiente, muitas vezes a benesse acabava em confusão entre os moradores e os tripulantes das embarcações. Para pôr fim ao imbróglio, foi construída uma caixa d’água no Morro do Índio, de modo que cada morador pudesse fazer a própria retirada. 

A partir da década de 1970, os moradores vislumbraram melhorias com a implementação da Companhia Estadual de Água e Esgoto. Entretanto, a Cedae não conseguia dar conta da crescente demanda, principalmente devido à explosão turística que ocorreu na região. No verão, o número de habitantes chegava a triplicar, causando grandes transtornos para além da falta de água. Já a coleta de esgoto era inexistente, ficando a cargo dos próprios moradores, que tentavam amenizar os problemas construindo fossas e sumidouros. 

Em 1998, a concessionária Prolagos assumiu a gestão pelos serviços de tratamento e distribuição de água e coleta e tratamento de esgoto das cidades de Cabo Frio, Armação dos Búzios, Iguaba Grande, Arraial do Cabo e São Pedro da Aldeia. Ao longo dos 25 anos de operação, a Prolagos investiu cerca de R$ 1,4 bilhão em saneamento, o que representa mais que o dobro da média nacional por habitante, segundo o Instituto Trata Brasil. Respectivamente, a concessionária mais que triplicou o fornecimento de água potável, passando a cobertura de 30% nos primeiros anos, para mais de 98% da população da área urbana, e saltou de zero para mais de 90% o índice de atendimento em esgotamento sanitário na região.

Recentemente a empresa celebrou a renovação da concessão até 2041. A concessionária informou que nos próximos anos pretende implementar um dos sistemas mais modernos de tratamento de esgoto do estado do Rio, sendo exemplo de impacto social, ambiental e econômico.