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Cultura

Opinião | Kauã Barreto | Coisas fiéis

17 abril 2025 - 15h53Por Redação

Outro dia, lendo uma crônica da magnífica Rachel de Queiroz (1910 - 2003), deparei com um trecho que me surpreendeu. Indagada sobre onde viveria se tivesse mais tempo e dinheiro, ela escreveu que dividiria os dias entre o Ceará, Paris e Rio, “sem esquecer uma passagem por Cabo Frio, sempre que possível”. Eu que, nascido em Macaé, vim morar na sétima cidade mais antiga do país aos quatro ou cinco anos, fiquei feliz ao saber disso. Mas sinto que conheço pouco esse lugar. Aqui, espiei, explorei, flanei (salve, João do Rio!) quase nada. Nesse sentido, sou talvez uma espécie de analfabeto local.

Ainda assim, nada como a poesia para nos dar uma ajudinha. Posso, por exemplo, recorrer aos versos de Victorino Carriço, à intimidade que parecia ter com esse céu que se abate azulzinho sobre nós: “Tuas praias, teu forte/ Olho ao longe e vejo o mar bravio/ À esquerda um pescador afoito/ Na lagoa que parece um rio...” E também a alguns poemas de Rodrigo Cabral, no livro refinaria, em que o conteúdo da memória e a criação, desde logo livre, estão esplendorosamente envolvidos. Em cirurgia, ele arremata: “no pós-operatório/ minha cidade/ é uma vela se esvaindo”.

Ah, quanta beleza nisso de acontecer dentro de nós lugares outros que excedem os físicos, visíveis, palpáveis! Creio que acedemos a essa maravilha só após uma intensa maturação do olhar — uma que se projeta sobre todas as paisagens e enriquece a maioria das experiências.
A partir de hoje, quero estar à busca desse olhar. Quero a mirada sensível desde a Lagoa das Palmeiras, onde costumo correr e caminhar. Quero a examinação cuidadosa daquilo que Drummond chamou de “coisas fiéis”. E assim caminhar mais vezes pela feirinha da Praça da Cidadania, ouvindo o burburinho dos turistas à caça de lembranças, apreciar os artesanatos, perceber aquele senhor de barba rala ajeitando a pilha de livros usados à sua frente, enquanto um rapaz dedilha o violão.

A sábia Rachel de Queiroz já havia entendido tudo. E já alertava, ó, contemporâneos, para que não caíssemos no que descreveu como “essa busca superficial do pitoresco, de admirar o óbvio, de documentar fotograficamente, para ter provas concretas do que viu, já que não lhe fica nenhuma marca interior da experiência”.