Recentemente comuniquei ao pessoal da Secretaria de Cultura de Cabo Frio onde se encontrava o célebre canhão que foi levado descabidamente do Forte de São Mateus para Nova Friburgo. E fui mais além, ou seja, forneci o nome da Instituição (Fundação Getúlio Vargas) pela qual se poderia solicitar formalmente a devolução da peça histórica que foi levada da cidade pelos alunos do Colégio Nova Friburgo no ano de 1953. Naquela época, o forte, que havia servido de lazareto, encontrava-se em ruínas, sendo que alguns de seus canhões foram jogados morro abaixo. A restauração do monumento foi efetuada em 1957, e os canhões que se encontravam fora de suas muralhas foram levados de volta aos seus lugares primitivos. Hoje quem sofre de cair em ruínas é o Colégio Nova Friburgo, que foi inaugurado em 1950 e que originalmente foi construído para ser um cassino.
Décadas atrás, eu e o jornalista Ralph Bravo o localizamos no jardim daquele colégio, numa ida a Friburgo que fizemos ao visitar os seus pais que moravam na cidade serrana, a qual foi fundada por colonos suíços e alemães.
Após localizarmos o canhão, fizemos algumas tentativas infrutíferas para termos ele de volta... No entanto, como diretor do Museu Histórico Marítimo do Cabo Frio, na data de 27/10/1999, eu já havia enviado um ofício ao colégio, solicitando a devolução do artefato militar. Objetivava que a restituição viesse fazer parte dos festejos dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil (22/04/2000). Embora eu não tenha recebido nenhuma resposta, consta que o ofício foi parar nas mãos do jurista e ex-aluno do Colégio, Marcelo Cerqueira, que teria argumentado à luz do Decreto 22785/1993, que estabelece a imprescritibilidade dos bens públicos. Ele disse que nessa “conformidade o aludido canhão não pode ser reivindicado pelo Museu Histórico de Cabo Frio. Por se tratar de bem público, somente a União poderá exercer o direito, se aprovada a sua propriedade” (Fonte Acioli Junior - Recanto das Letras, 13/11/2022).
O quê? Levaram um canhão que não lhes pertencia e você considera isso uma boa ação?
No artigo publicado no Recanto das Letras, Acioli Junior escreveu: “Cabe ressaltar que o real proprietário do Forte São Mateus e do seu acervo é a União (Governo Federal), pois o Forte São Mateus e todo seu entorno foi tombado pela Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que tombou o imóvel, o penedo em que se ergue e a ponta da praia, num círculo de quinhentos metros a partir do centro do forte em 30/11/1957. Além, é claro, de ele pertencer à cidade de Cabo Frio e a sua população. Nenhum argumento falacioso como o do jurista Marcelo Cerqueira, mencionado anteriormente, dá o direito do Ginásio Nova Friburgo, de seus ex-alunos e ao Clube de Regatas Flamengo, nem a ninguém de ter posse de um bem patrimonial pertencente a Cabo Frio e a sua população. Da mesma forma, nenhuma entidade ou quaisquer pessoas têm o direito de se apropriar de um bem patrimonial pertencente à cidade de Nova Friburgo. O que os alunos e o professor fizeram em 1953 foi uma ação execrável chamada de furto. Com agravante de ser um bem patrimonial, pertencente a toda coletividade e à cidade acima citada. Lendo sobre a história do ocorrido, impressionou-me dois testemunhos narrados por dois alunos que estavam na excursão de 1953. O primeiro foi do aluno Robert Gayer, que relata sua conversa com o pai ao chegar em casa:
– Praticamos uma boa ação, resgatamos um canhão do Forte São Mateus e o levamos ao Colégio.
Meu pai ficou bravo, nunca o tinha visto fora de si.
– O quê? Levaram um canhão que não lhes pertencia e você considera isso uma boa ação?
– Mas pai, o canhão estava largado na areia. Junto com outros, abandonado pela autoridade pública, desprezado pela população local.
Procurava justificar-me diante da fúria de papai.
– Boa ação seria pegar o canhão e colocar no alto do Forte donde nunca deveria ter sido levado.
Os meus argumentos não adiantaram, apenas agravava minha situação diante da ameaça de meu pai. Fui prudente em desviar o assunto para outro tema, caso contrário, eu teria levado até uns tapas, tal era a severidade do velho."
Junho de 1953, a história
Hoje, acredito que as coisas estejam mais fáceis para que tenhamos o canhão de volta. O antigo e orgulhoso Colégio encontra-se desativado e abandonado. E a decisão de devolução caberia apenas ao bom senso do atual presidente da Fundação Getúlio Vargas (FGV) — o economista Carlos Ivan Simonsen Leal. Assim, chegou o momento de a FGV devolver a peça histórica ao seu devido lugar e dar por encerrada a uma história que nada condiz com os preceitos éticos e educacionais apregoados pela Instituição, muito mais porque recentemente o professor Carlos Ivan conheceu a nova sede da FGV Europe, na cidade de Colônia (Alemanha), que foi inaugurada em abril de 2024. A sua visita ressaltou o compromisso da FGV em expandir sua presença global e fortalecer sua presença na Europa. Portanto, a FGV também precisa fortalecer a sua imagem junto à população de Cabo Frio, devolvendo o que foi tirado da cidade pelos seus antigos alunos.
O Colégio Nova Friburgo, conhecido como Fundação, foi considerado um estabelecimento de ensino referência em todo o Brasil por adotar a pedagogia dos melhores colégios ingleses e americanos, a exemplo da Summerhill School: famosa pela liberdade de seus alunos e porque ensinava democracia. Fundada pelo escritor escocês Alexander Sutherland Neill (mais conhecido como A.S Neill), a Summerhill School existe há 100 anos. A primeira sede foi em Dresden, na Alemanha, e desde 1927 está em Suffolk, cidade litorânea a cerca de 200 quilômetros de Londres. Numa grande propriedade em meio à natureza, alunos, professores e funcionários convivem em pé de igualdade, buscando sempre o equilíbrio entre a liberdade e a responsabilidade
Já o Colégio Nova Friburgo funcionou no período de 1950 a 1977 (sendo alugado depois por outras instituições). A fase na qual realmente a sua metodologia era semelhante aos colégios estrangeiros foi nos primeiros quinze anos de sua atividade. Nele estudavam majoritariamente, os filhos da elite de todo o país. Em suas instalações externas existe o canhão do Forte de São Mateus, e baseado no relato de um ex-aluno Carlos Geraldo de Barros Meyer, que estudou no período de 1952 a 1956, podemos narrar como esse artefato do tempo do Brasil Colônia foi parar no famoso colégio de Friburgo.
Em junho de 1953, dentro da carroceira de um caminhão, chegavam ao Colégio Nova Friburgo alunos vindos de Cabo Frio. Sob o olhar incrédulo de outros alunos, estava dentro da carroceria o tal canhão. Outras turmas haviam tentado trazer para Friburgo um dos canhões do Forte e foi a de Barros Meyer que conseguiu. Saíram do colégio numa madrugada de sexta-feira no mês de junho, vestidos de escoteiros, com facas, cantis fixados aos cintos e viajaram rumo a Cabo Frio. O responsável pela excursão era o Professor Guedes, que conduzia vinte garotos na faixa de doze anos de idade. Chegando ao seu destino, armaram uma barraca que acomodava a todos. A barraca tinha pertencido à Força Expedicionária Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial. O Professor Guedes era um ex-combatente. Na parte interna da barraca se via vários desenhos como “a cobra fumando”, o conhecido símbolo da FEB. Havia ainda escritas na parte interna da barraca, mensagens, agradecimentos, orações e inúmeras medalhas de santos fixadas por alfinetes. Eram inscrições que foram feitas por soldados brasileiros nos campos de batalha na Itália.
Alegush! Alegush, gush, gush, umaiti, umaitá, rá, rá, rá!
Na deserta Praia do Forte, os alunos do Colégio Nova Friburgo se divertiram pra valer, mergulhando e jogando bola no areal branco. No último dia do passeio, a conversa entre eles girou em torno do canhão e de que maneira conseguiriam levar tão pesada peça. O motorista do caminhão disse que poderia ajudar. Entraria com o veículo na praia a uma distância segura e puxaria o canhão até a beira da praia.
Assim, escolheram um canhão que se encontrava nas pedras do morro onde estava assentado o Forte de São Mateus e que estava mais próximo à areia. Conseguiram rolar o canhão usando o cabo de uma enxada como alavanca. Tal recurso foi feito sem grande esforço e o canhão foi rolado pedra abaixo. O ponto crítico era o colocar dentro da carroceria. Amarraram uma corda na boca do canhão e o puxaram, fazendo um tipo de cabo de guerra, enquanto o professor, o motorista e os alunos mais robustos levantavam o canhão pela boca pondo-o em posição vertical. No dia seguinte retornaram a Nova Friburgo e, chegando ao colégio, foram ovacionados pelos colegas diante daquela “façanha”. O professor Amauri, então diretor do colégio, prometeu que o canhão seria colocado no jardim em um pedestal e com uma placa alusiva ao feito. E, assim, o canhão de fato foi colocado no centro de um jardim, que passou a ser conhecido como a Praça do Canhão.
Mesmo que até hoje aleguem que o canhão estava “abandonado”, isso não se justifica que o levassem como troféu para o Colégio Nova Friburgo. Mas tudo indica que o reprovável ato dos alunos em levar a peça histórica e que teve o aval de um professor e do próprio diretor daquela instituição de ensino condizia com o comportamento do seu corpo discente. Os seus alunos eram conhecidos por provocar confusões com os alunos de outros colégios, principalmente os do Colégio Anchieta e do Colégio Estadual Jamil El-Jaick. Eles usavam correntes de metal como cinto para, em caso de confronto, fazerem uso desse instrumento. Justificavam que estavam sempre em minoria em relação aos outros colégios e precisavam se defender dessa forma.
Nas sessões de cinema costumavam soltar galinhas e pombos, enfim, tudo aquilo que vinha transgredir a ordem e a rotina da cidade. E Cabo Frio, por sua vez, não ficou livre deles. Houve época em que os alunos do colégio eram obrigados a andar em grupos. Adoravam jactar-se de conseguir chamar a atenção das moças friburguenses por serem mais sedutores e envolventes. Nos desfiles de Sete de Setembro se esforçavam para ser a melhor bateria. Seu grito de guerra era: Alegush! Alegush, gush, gush, umaiti, umaitá, rá, rá, rá! A Fundação Getúlio Vargas se preocupava em formar uma elite de profissionais altamente qualificados. E o destino desses alunos não foi outro! Muitos deles ocuparam os mais elevados escalões de empresas privadas e do governo brasileiro, entre eles, alguns dos 20 alunos quem em 1953 levaram de Cabo Frio, um canhão. Que o atual governo de Cabo Frio, através de sua Secretaria de Cultura, consiga resgatá-lo. Aconselho que busque a orientação da Procuradoria do Município e do IPHAN...