“Entretanto, nas minhas reflexões escuto uma voz que me diz ‘Consagra- lhe a tua existência, porém ela nunca será tua; vive para ela, porém ela não viverá para ti! E todavia ela será tua, viverá por tua causa, e não te pertencerá!’”
(Trecho do livro, pág. 110)
Machado de Assis, com então 16 anos, chamou o escritor, poeta e dramaturgo fluminense Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa, ou simplesmente Teixeira e Sousa (1812-1861), de “o gênio adormecido”. Foi assim que o futuro Bruxo do Cosme Velho intitulou um poema, publicado em 1855 no periódico “Marmota Fluminense”, para reverenciar aquele que, apesar de injustamente esquecido após sua morte, em 1861, é reconhecido por especialistas, entre eles José Veríssimo — o principal idealizador da Academia Brasileira de Letras —, como autor do primeiro romance brasileiro, “O Filho do Pescador” (180 pág.), obra resgatada pela Sophia Editora e que ganha uma nova edição especial e comentada.
Nascido em Cabo Frio (RJ), Teixeira e Sousa, em atual contexto, foi conduzido às margens do cânone de nossa literatura, tendo lembranças pontuais em sua memória. Antes de ser publicado como livro, “O Filho do Pescador” foi veiculado em rodapés do folhetim “O Brasil”, entre 6 de julho e 22 de agosto de 1843. Logo depois, no mesmo ano, foi impresso pela tipografia de Francisco de Paula Brito, de quem Teixeira e Sousa veio a se tornar amigo e sócio. A leitura e análise da prosa da obra possibilitam compreender como o autor colaborou para além da fundação, definir rumos e características do romance nacional.
Ao longo do século 20 até os dias atuais, raras foram as edições da obra. A Editora Sophia faz o resgate do livro, abraçando a importância de um novo olhar sobre o escritor fluminense que caiu no gosto da época, mas se perdeu na historiografia do país. Ao reerguer este monumento literário, a editora reafirma seu compromisso com a valorização e divulgação da literatura nacional, entendendo a necessidade desta reedição não apenas pelos méritos literários da obra, mas também como contribuição indispensável para a educação e formação cultural de futuras gerações.
O projeto, segundo o editor e organizador, Rodrigo Cabral, visa não apenas encantar os já admiradores de Teixeira e Sousa, mas também despertar o interesse de novos leitores, ávidos por descobrir os grandes prosadores e poetas que formam a árvore genealógica da literatura brasileira até os tempos de hoje.
“O Filho do Pescador” destaca-se não apenas por sua inovação narrativa, mas também por detalhar com extrema beleza descritiva o litoral brasileiro, entrelaçando a cultura local com a trama de seus personagens e as relações sociais e humanas de sua época.
O cônego Fernandes Pinheiro (1825-1876), que dedicou sua vida às letras e foi um dos intelectuais que mais se destacaram no aparelho cultural do Império, ao falar das narrativas de Teixeira Sousa refere-se ao autor como um “pintor dos nossos usos e costumes”, por tão bem pincelar em palavras a sociedade de seu tempo.
O livro, originalmente dividido em 20 capítulos, conta com 595 notas, quase todas elaboradas pelo doutor em Letras pela UFRJ Gustavo Rocha, além de apresentação da professora Hebe Cristina da Silva, mestre e doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas, cuja tese de doutorado estabelece relações entre os escritos de Teixeira e Sousa e o contexto de formação do romance brasileiro. A obra também conta com texto de orelha assinado pelo jornalista e sociólogo José Correia Baptista.
“Uma obra de indiscutível relevância para a literatura brasileira, onde os leitores entrarão em contato com um enredo recheado de peripécias, crimes, redenções, punições, reflexões edificantes, descrições de paisagem e muitas surpresas distribuídas nos vinte capítulos que contam a história de Laura e Augusto, o filho do pescador referido no título”, ressalta Hebe.
O livro tem como ponto de partida a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, onde Augusto encontra a moça Laura, à deriva num naufrágio. Laura, de alma complexa e beleza raríssima descritas pelo autor, que narra o livro em primeira pessoa, está no centro do entrecho. Além de Augusto, com quem se casa, acaba por se envolver com Florindo, Marcos e Emiliano entre percalços, incêndios e assassinatos em um suspense que apronta ligeiras reviravoltas a cada novo capítulo.
Com núcleo de personagens reduzido, Teixeira e Sousa segue o costume de oradores da época e busca preencher sua escrita com o máximo de detalhes e costumes locais de forma poética sob a intenção de bendizer o Rio de Janeiro oitocentista. Ao mesmo passo, conduz com habilidade em sua narrativa as intenções acobertadas dessas pessoas e trazer na escrita as reflexões morais que levam o leitor a questionar as histórias, perspectivas, verdades e mentiras ali contadas. Laura não se apresenta como simples moça recatada, mas alguém capaz de suas próprias maquinações e artimanhas. Distante do papel imaginado para a mulher na sociedade e descrita em outros cânticos e poesias contemporâneos como doce objeto de conquista.
São palavras do professor, ensaísta e crítico literário Aurélio Buarque de Holanda: "O mestiço de Cabo Frio é que dá começo à história do nosso romance — do romance brasileiro, situado no Brasil, feito por filho do país, de espírito formado na terra, e a ela radicalmente ligado". Esse registro consta de 1941, na “Revista do Brasil”, e reforça a defesa do pioneirismo dos escritos de Sousa como marcos da literatura brasileira.
Hebe ressalta ainda que, mesmo não tendo Teixeira e Sousa ingressado para “o cânone ao lado dos grandes prosadores românticos”, a história editorial de seus romances e os textos críticos, que permitem recuperar a recepção do escritor no século 19, evidenciam seu lugar de prestígio na cena literária nacional.
Para muitos que estudam o assunto, a obra de Teixeira e Sousa pavimentou o caminho para as futuras gerações de escritores brasileiros. De tal forma que “O Filho do Pescador” não é apenas o primeiro romance brasileiro, mas um precedente para a representação literária das paisagens, pessoas e dilemas sociais do Brasil, uma vez que estabelece um profundo diálogo com a identidade nacional.
A reedição da obra surge como um ato de reverência à rica tapeçaria cultural do país. A obra transcende seu valor narrativo, apresentando-se como um documento histórico em cujas páginas pode o leitor imergir nas profundezas da sociedade brasileira do século 19, compreendendo suas complexidades, costumes, desafios e belezas territoriais.
Filho mais velho do português Manoel Gonçalves e Ana Teixeira de Jesus, brasileira afrodescendente, Teixeira e Sousa nasceu em Cabo Frio, em 28 de março de 1812.
Sua trajetória mostra que apenas o talento para as letras não lhe seriam suficientes para alcançar o lugar de destaque que conquistou na história da literatura brasileira. Foi preciso também obstinação. Aos 10 anos, devido às dificuldades financeiras do pai, que era comerciante, precisou trocar os estudos de latim pela carpintaria. Para aperfeiçoar-se no ofício, mudou-se para a capital, em 1825. Mas, cinco anos mais tarde, voltou à terra natal, onde descobriu que todos seus irmãos haviam falecido.
Os anos seguintes também não lhe pouparam de perdas. Segundo registros biográficos, em 1834, todos seus familiares já haviam morrido, e, sozinho no mundo, Teixeira e Sousa retorna de vez ao Rio em 1840, conseguindo empregar-se na tipografia do jornalista Francisco de Paula Brito, de quem mais tarde tornou-se amigo e sócio.
Casou-se em 1846 com Carolina Maria Teixeira e Sousa, com quem teve seis filhos. Ao longo de sua carreira, a literatura esteve relegada a segundo plano, enquanto tentava de diferentes formas garantir sua subsistência, conciliando como pôde, ao longo da década de 1840, a produção de suas obras e o trabalho no estabelecimento do tipógrafo carioca.
Em 1849, passou a exercer o cargo de professor público de Instrução Primária, na região do Engenho Velho, o que lhe permitiu oferecer um melhor conforto à sua família. Em 1855, obteve a nomeação para escrivão da 1ª Vara do Juízo do Comércio da Corte, cargo que exerceu até o fim da vida.
Além de “O Filho do Pescador”, são obras do autor: “As Fatalidades de Dois Jovens” (1846), “Tardes de um Pintor ou As Intrigas de um Jesuíta” (1847), “Gonzaga ou A Conjuração de Tiradentes” (1848-1851), “Maria ou A Menina Roubada” (1852-1853), “A Providência” (1854), “Cânticos Líricos” (1841 — 1842), “Os Três Dias de um Noivado” (1844), “A Independência do Brasil” (1847-1855), “Cornélia” (1844) e “O Cavaleiro Teutônico ou a Freira de Marienburg” (1855).
Teixeira e Sousa faleceu em 1º de dezembro de 1861, aos 49 anos, em decorrência de uma hepato-enterite. Sua morte foi abordada pelos principais jornais diários da cidade do Rio de Janeiro e por alguns periódicos literários de renome, como “A Marmota” e a “Revista Brasileira”. O “Diário do Rio de Janeiro”, na edição de 3 de dezembro, publicou um texto sobre a vida e a obra do autor. No artigo, o escritor é lembrado como um “exemplo civil e literário”.
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