Fim de ano: tempo de sepultar o que aconteceu de ruim, agradecer a Deus pelos bons momentos vividos e planejar os próximos 365 dias, encarados por muitos como páginas em branco à espera de belas histórias para preenchê-las. A passagem de ano é um acontecimento que mexe fortemente com o íntimo do ser humano.
Essa é uma época especial, quando tudo deve ser calmamente organizado, visando determinados objetivos. O fim deste ciclo e o início do próximo envolvem um ritual de passagem, em que se deve “enterrar” o ano anterior para que não haja mácula alguma no que se inicia.
Parece algo bastante religioso, certo? Não só parece, como é. E essa visão, no geral, não é particular a uma religião ou outra, mas sim algo presente (com suas devidas especificidades, obviamente) nas religiões monoteístas e primitivas. Trata-se da renovação do tempo, essencial para trazer ao tempo presente aquilo que já se passou, reiterando constantemente o valor e o peso dos rituais (situação que, inclusive, vemos no momento da Eucaristia).
No clássico “Mito e Realidade”, o intelectual romeno Mircea Eliade aborda a razão pela qual estimamos tanto o Ano Novo: entendemos que vivemos em um mundo degradado e decaído, repleto de mazelas e efemeridades. Nada dura, tudo padece e perece. Porém, os nossos antepassados nos legaram o conhecimento de que o mundo surgiu sendo belo, eterno e perfeito. Tudo isso mudou quando um determinado evento (a caixa de Pandora ou a queda de Adão, por exemplo) mudou os rumos da história e fez com que tudo caísse em desgraça.
Dominar o tempo é algo que, até hoje, mexe com nossa cabeça. Inúmeras vezes nos arrependemos de algo cometido no passado, o que nos provoca o desejo de reverter a situação regredindo temporalmente. Quando olhamos para o futuro, para aquilo que nos é completamente incerto, usamos parte do tempo presente para construir nosso colchão de segurança e enfrentar quaisquer adversidades. O tempo mexe conosco, pois é finito, imprevisível e nunca retorna.
Mas Eliade nos demonstra que ele se renova. E é a passagem de ano que marca esse momento tão importante, o que nos possibilita participar de um glorioso recomeço:
“É fácil compreender por que a entronização de um rei repetia a cosmogonia ou era celebrada por ocasião do Ano Novo. O rei era tido como o renovador de todo o Cosmo. A renovação por excelência tem lugar no Ano Novo, quando se inaugura um novo ciclo temporal. Mas a renovatio efetuada pelo ritual do Ano Novo é, no fundo, uma reiteração da cosmogonia. Cada novo ano recomeça a Criação. E são os mitos — tanto os cosmogônicos como os mitos de origem — que recordam aos homens como o mundo foi criado e tudo o que ocorreu posteriormente”.
O nosso desejo de dominar aquilo que nos escapa pelas mãos é absurdo. O ser humano, desde sempre, sonha em ser integralmente o senhor do seu próprio destino, dominando a natureza ao seu redor e moldando a realidade ao seu bel-prazer. Há uma razão, portanto, para que vejamos o Ano Novo como um momento especial, único e mágico, pois ele nos oferece a possibilidade de retornar às origens e construir algo novo a partir de um recomeço imaculado.
Essa é uma oportunidade vista como única, e o homem contemporâneo não pode deixar de agarrá-la. Porém, sendo geralmente um sujeito que não conhece as suas próprias origens, além de desprovido de qualquer saber religioso e muito focado no presente e nas coisas seculares, os seus “rituais” são toscos e não visam o transcendental e/ou o bem coletivo (como são os casos relatados por Eliade sobre as sociedades antigas e primitivas), pois objetivam atender somente às suas demandas e necessidades próprias.
A euforia do réveillon, a loucura nas ruas e as pobres mandingas desse sujeito dizem muito sobre as pessoas da atualidade: elas querem possuir tudo, mas fazem pouco (ou nada) por isso; acreditam que estarão magicamente realizadas na chegada do novo ano, mas se esquecem que é impossível a todos terem seus desejos realizados (pois, inúmeras vezes, haveria conflito de interesses); grosseiramente, modificam o significado das coisas para que, hoje, sejam comercialmente mais atrativas (a roupa branca, originalmente usada pelo umbandistas no Ano Novo, passou a representar os votos de paz). Ao final de tudo, ficam com aquela ressaca interior que as acompanha até o próximo dia útil, momento em que as coisas “estranhamente” voltam a ser como antes.