Antes mesmo do primeiro caso de Covid-19 confirmado em Cabo Frio, no dia 7 de abril de 2020, diversas medidas de prevenção estavam em vigor, dentre as quais a suspensão do atendimento presencial no comércio da cidade, iniciada no dia 21 de março, um sábado. A verdadeira estranheza do fechamento total foi percebida apenas na segunda-feira, o dia em que Cabo Frio parou e os privilegiados puderam ficar em suas casas. Mas e quem não possui casa?
Passados quinze meses desde o breve decreto que causou o maior impacto de hábitos na população, é possível olhar em retrospecto para as pessoas em situação de rua, que estavam ainda mais vulneráveis e potencialmente alheias à crise daquele momento. Agora, após as primeiras pessoas desse grupo serem vacinadas em Cabo Frio, faz sentido contar o que ouvi por ocasião de meu trabalho na Assistência Social do município e nos grupos voluntariados que participei.
Até então, o comércio era o principal meio de alimentação das pessoas em situação de rua durante os dias úteis. De portas fechadas, a oferta de comida diminuiu drasticamente e, para alguns, desapareceu. Foi o caso do primeiro homem com quem conversei na terça pós-fechamento. Segundo ele, havia comido um pão no dia anterior, nada naquele dia, e não sabia o que estava acontecendo.
– Achei que fosse algum feriado – ele disse.
O alerta de que essa seria a normalidade dos próximos dias não foi suficiente para aguçar sua curiosidade sobre o motivo, me convocando a dizer sobre o vírus e sua gravidade. Ele olhava ao redor, parecia desatento e indiferente às questões mais básicas do fato. Foi quando percebi que ele estava inspecionando os restaurantes da praça. Foi quando percebi que, mesmo na inédita e mais grave situação dos últimos tempos, sua realidade ainda exigia pensar a curto prazo, no item de sobrevivência do dia. Repentinamente chamou os outros membros do grupo para advertir que teriam que procurar comida pela cidade ou no centro de acolhimento da prefeitura, que obviamente não teria vagas para todos.
A filantropia estava presente na sociedade antes da Assistência Social existir como política pública e ainda permanece relevante frente a insuficiência do Estado. Decidi dar conta dessa sensação de insuficiência saindo às noites com projetos sociais para abranger uma área maior de atuação. Numa população cuja tuberculose é uma constante, a Covid-19 tem um potencial aniquilador. Sendo assim, um dos itens básicos de sobrevivência neste novo momento seria a informação, pois a maioria não sabia os sintomas da doença, tampouco a forma de transmissão.
No entanto, a segunda história é sobre sabedoria, uma prova de que responsabilidade social pode faltar no cidadão da classe média e pode sobrar em quem vive nas ruas. Já na terceira semana após o primeiro caso em Cabo Frio, conversei com um senhor de 64 anos. Faltavam 5 meses para a aposentadoria por idade, sendo essa a sua esperança de saída da situação de rua.
A essa altura, eu já possuía um roteiro de conversa para orientar quem encontrasse, que consistia nas informações sobre o que acontecia no Brasil e nos hábitos de prevenção da contaminação. Pela primeira vez até então, cada hábito era ilustrado com um exemplo praticado por ele próprio. Estendeu as mãos para mostrar os cuidados de limpeza; fez questão de salientar que o cobertor, o cigarro e o copo não eram compartilhados; e que dormia afastado. Vendo minha surpresa, completou dizendo que sua fonte de informação era a banca de jornal, onde diariamente folheia o mostruário. Não bastasse o seu desejo pessoal pela informação, um companheiro atento à conversa complementou:
– Foi ele quem me ensinou que, a partir de agora, não posso falar muito perto dos irmãos.