Na praça Porto Rocha, onde de domingo a domingo funciona uma feira de livros, encontrei o que há muito tempo me faltava na cidade sem que me desse conta: um sebo, com livros antigos e todas as suas histórias não contadas, anotações de quem os leu, e pensamentos suspensos daqueles que tiverem o prazer de folhear as páginas. Sempre passei pela praça, e vez ou outra, por curiosidade, me vi sob as tendas brancas garimpando livros de autores conhecidos, ou apenas em busca da oportunidade de arrebatar a preço de banana um bom livro. Entre seções infantis, de autoajuda, romances modernos e de entretenimento, minha visita sempre foi passageira: apenas mais uma transeunte curiosa.
Mas de longe imaginaria encontrar ali um refúgio de velhos amigos, de páginas amareladas e preenchidas de sentimentos de leitores, repletas de sensações e comoções de antecessores ao novo dono. Funcionava também ali um sebo. Em um dos estandes pouco evidente entre tantos outros em destaque. E ali me aguardava: “Paracelso, a chave da alquimia”, em capa vermelha de detalhes dourados, pertencente à “biblioteca Planeta”, e empoeirado próximo á junção da capa. Não me restou dúvida: era ele, tinha de ser. Paracelso, médico, toxicologista, velho conhecido meu e dos acadêmicos da área da saúde, uma raridade em meio a tantas páginas amareladas e envelhecidas. Cada detalhe do livro me ganhava conforme se abria, e, dentro de uma das páginas, um bilhete premiado: um voucher de voo com destino a Brasília, da extinta companhia VARIG, datado para ás 16:45, no assento 47. Estava duplamente entorpecida; pelo descobrimento do livro, e pelo brinde corroído pelo tempo, e que me levou a diversas divagações; se tinham perdido o voo, se buscava a alguém, ou se apenas o usou como um marca páginas. Mas aquele tesouro, naquele baú de capa vermelha, foi para mim uma grande vitória, e atiçou minha curiosidade: O quanto mais haveria escondido nos sebos? Nos escombros das bibliotecas esquecidas e dos livros empoeirados? Que estórias além das entrelinhas seríamos capazes de descobrir por nossa própria imaginação?
Próximo à feira, funciona a biblioteca Municipal de Cabo-Frio, em sua arquitetura antiga, e que chama a atenção, e pelas janelas quebradas pelo tempo percebe-se que por dentro conservam-se paredes pintadas a cal e que a maresia não foi capaz de corroer, assim como as obras literárias ali existentes. A cada passo que dava em direção às estantes, em busca de novas descobertas, percebia que embora a aparência de abandonada e esquecida, aquela casa resistia aos anos. E exibia uma aura de diligência, percebida quando as funcionárias da biblioteca saudavam a quem entrasse, não importa quem fosse. Entendi, naquele momento, entre a praça a céu aberto e a casa centenária, que, por mais óbvio que possa soar, os livros estão em decadência. E quando digo decadência, não porque foram deixados de produzir, mas porque há tão pouco quem se encante pelas entrelinhas entre a contracapa e o epílogo, que espaços que nos relembram quem são os moradores de Cabo-Frio, e porque a cidade tem a sua história, mas porque hoje dá-se preferência ao imediatismo, ao novo. E se posso parafrasear Elis Regina, e dizer que “o novo sempre vem”, sendo esse novo a digitalização dos livros, posso também evocar um passado que se faz tenro, e presente, seja na arquitetura da cidade, ou existindo em lugares esquecidos, apenas apreciados pela paisagem, sem que saiba a história. E como boa saudosista e devota de minhas crenças, continuo seguindo cada miragem de história que possa existir, cada memória por trás de um livro, de uma casa, de uma fotografia; e é exatamente nesses momentos, de maior nostalgia, que vemos o quanto precisamos persistir na conservação da memória e do patrimônio público, para que a cultura cabo-friense jamais se torne um surrealismo, um devaneio de sentimentos como em uma pintura de Dalí. Ah! E se houvesse uma forma de conservar a imagem da cidade lado a lado entre o passado e o que esperamos para o futuro, eu escolheria sem a pressa de um pescador sentar-me à beira-mar com um livro velho, admirando as obras das quais urgem a cidade; afinal, nem só de memória vive-se a cultura.