No domingo (08/11), o programa “Fantástico” da Rede Globo exibiu uma reportagem sobre o fechamento do maior hospital psiquiátrico do Brasil, o Nise da Silveira, despertando curiosidades até então pouco sabidas referentes a luta antimanicomial.
Nise da Silveira foi uma médica pioneira no ramo da psiquiatria brasileira, um campo antes dominado apenas por homens. Além do pioneirismo feminino, ela também revolucionou a psicoterapia através da inserção da terapia ocupacional, que ia em contramão ao tratamento padrão para pacientes com transtornos mentais até o momento. Nise introduziu a arte e deu voz aqueles que não eram ouvidos, mas apenas medicados e que se encontravam muitas vezes em condições sub-humanas, em consequência de serem considerados mentalmente incapazes. O museu da imagem e do som, ainda que em condições precárias, revela-nos a preciosidade do trabalho da psiquiatra, mas também a genialidade de mentes que até então viam-se silenciadas por terapias agressivas e pelo preconceito.
A luta antimanicomial, que tem como principal objetivo humanizar distúrbios mentais, combatendo principalmente preconceitos enraizados na nossa sociedade, busca fornecer aos portadores uma vida minimamente digna, ainda que haja muitos caminhos a percorrer. A desativação de hospitais psiquiátricos mostra o resultado desses anos de lide. O fechamento dessas unidades não significa a ausência de uma assistência, uma vez que consultas periódicas, realização de terapias e distribuição de medicação de acordo com as necessidades continuarão ocorrendo. No entanto, um mecanismo-chave para a otimização do tratamento foi inserido: o direito ao convívio, não apenas restrito a corredores hospitalares, ou áreas de recreação – nas quais há a sensação de aprisionamento. O convívio com a família, antes pré-determinado por horários, dias e local de visitação agora é mais amplo, permite uma reinserção social, que flui além do convívio dentro das unidades habitacionais, situadas fora de complexos hospitalares, com todo o cuidado e assistência, como a presença de tutores, por exemplo.
A reforma da psiquiatria brasileira, por mais que muitas vezes deixada debaixo do tapete, exige atenção e apoio, visto que o Brasil é o país da américa latina com maior índice de pessoas com depressão, sendo 5,8% da população afetada, e com 83% da população apresentando algum transtorno mental, segundo a OMS. Ainda que retratada de forma repartida da medicina “usual”, na qual doenças crônicas recebem um maior assistencialismo, ou são protagonistas ao pensarmos no cenário da saúde pública brasileira. A saúde mental é parte fundamental do bem-estar coletivo, pois é impensável uma manutenção de uma expectativa vida alta e equilibrada sem assistencialismo mental, e cabe lembrar que a expectativa de vida e a qualidade de vida não são sinônimos. Embora a expectativa de vida brasileira esteja em ascensão, os números da qualidade não são acompanhados na mesma proporção. Na qualidade de vida são considerados os anos em que bem-estar físico e psíquico estão sendo bem desenvolvidos. Portanto, a expectativa de bem-estar em vida não deveria ser medida somente pela ausência de doença. Erra quem pensa que saúde é a ausência de doença. Pensar isso é um erro grotesco, que desconsidera qualquer esforço de conviver com a realidade brasileira. Saúde coletiva é também o tempo que se gasta no transporte público entre o trabalho e a casa, é também alimentação, é a prática de atividades, é o lazer, é o tempo de se desligar do mundo e conseguir conversar com o vizinho, ou com um amigo. Saúde é antes de tudo o autocuidado, e o cuidado com o outro, não apenas um hemograma completo com níveis de colesterol e glicose dentro dos limites.
Urgimos falar sobre saúde mental, e não só da porta do consultório para dentro, mas dos limites da mente em diante. Para que a luta continue sendo válida e alcançando a todos, precisamos livrar-nos dos estigmas sociais do que compreendemos – ou não compreendemos – como ‘’loucura’’, ou incapacidade mental, rotulando e isolando aqueles que não somos capazes de compreender. Talvez o que postulamos como loucura seja apenas uma limitação do nosso horizonte em estabelecer uma empatia e aceitar que existe mais do que somos capazes de mensurar. O fechamento da Hospital Nise da Silveira em hipótese alguma é um demérito para aquela que lhe deu o nome, ao contrário: é uma vitória para aqueles que lutam por condições mais dignas na saúde pública, embora talvez o mais árduo comece agora: a aceitação social das doenças mentais.