Com a popularização das redes sociais percebemos o fenômeno do surgimento dos “especialistas” em "tudismo”. O neologismo se justifica pela capacidade autodeclarada de produzir ou reproduzir falas apressadas com base no universo do simples achar tomado como verdade absoluta. Não que defendamos o proselitismo inútil da erudição estéril. Longe disso. Mas é notório que a falta de um embasamento coerente, de dedicação e investimento no tempo de elaboração e do consumo de fontes de qualidade para que se possa construir nem que seja uma opinião são os ingredientes que compõem a receita do tudismo.
Certamente você que está lendo esse texto já deve ter se deparado com algum embate nas redes sociais (com você ou com terceiros) no qual os argumentos foram sumariamente substituídos por um tom de fala agressivo e descontextualizado. A base disso repousa na frase mais cínica do universo: “Contra fatos não há argumentos”. Desse modo, basta colar
uma coleção de fatos ou pescar algum acontecimento isolado que se tem a
pedra filosofal de qualquer discussão.
Nenhum fato se descola de argumentos. Fatos em si nada provam, pois há em torno deles circunstâncias e percepções. Portanto, o exercício analítico deles está ligado a vieses, ou seja, interpretamos sempre e sempre
a partir dos nossos referenciais. Eis a verdadeira disputa!
Porém é mais comum que se recorra a desvios de argumentação, e aí entra em cena o conjunto bastante sortido das falácias. Falácias são argumentos quase lógicos dos quais alguém se utiliza para produzir a persuasão desejada por meio do engano. É uma prima-irmã da mentira, pois não opera na dimensão da verdade, e sim no que é verossímil. Ou seja, numa discussão recheada de falácias o importante é que as coisas façam
sentido, mas que não necessariamente tenham que ser verdadeiras. Agora você certamente lembrou das postagens daquele seu grupo “polêmico” do WhatsApp...
Mas não vá pensando, você que nos lê, que o “barraco” visualizado há poucos minutos em uma postagem no Facebook vem de um comitê de especialistas em falácias. A maioria
sequer conhece a palavra ou o seu significado. É um uso intuitivo, mas produtivo e intenso. Contudo, nem sempre foi assim e isso, de certo modo, explica a razão pela qual os
discursos, falas e argumentos “de antigamente” parecem tão mais interessantes do que conseguimos (com muito esforço) produzir atualmente.
No Brasil Império, ela fazia parte dos programas de ensino, o que pode
ser facilmente comprovado ao observamos os currículos do quinto e sétimo ano (1887) do Colégio Pedro II. Conhecida tanto como ciência quanto como arte, ela é a mais completa teoria e prática da argumentação. Na virada do século XIX para o XX, mais
precisamente em 1885, a Reforma Jules Ferry retirava a Retórica dos currículos escolares franceses. Algumas décadas depois, na aurora do Brasil Republicano, ela também foi
retirada do currículo nacional sobrando fragmentos bastante diluídos aqui e acolá nas aulas de Língua Portuguesa e Literatura. Ou seja, quando mais precisávamos saber argumentar e contra-argumentar (a introdução da democracia iluminista republicana), simplesmente privamos as gerações dessa habilidade.
O resultado é cumulativo. Por isso
vivemos essa dificuldade contemporânea do tudismo. A arrogância do saber tudo como a capacidade de opinar o nada em alguma coisa. A preguiça do confronto retórico se
reduz ao embate pela última postagem, a lacração. Para isso, a regra de inferência é não possuir regra. Tudo vale e tudo cabe, desde ofensas pessoais a ameaças à integridade física, emocional etc. E no vale da mediocridade, ela prospera e valoriza o idiota
no lugar do sábio.
(*) Paulo Cotias é professor de História.