Pelos discursos, postagens, práticas e governos, podemos traçar um confiável panorama do que a esquerda brasileira acredita atualmente quando está no poder ou em disputa por ele. Para começar nossa conversa, temos a questão da cultura como um produto da alma do nosso povo. Seguindo o fio do raciocínio, a esquerda acredita ser de grande importância que o percurso da produção cultural seja de fato reflexivo, ou seja, que as realizações retornem ao realizador para que nelas se reconheça e afirme. A alma do povo é a cultura, e aqui ela engloba não apenas as manifestações das artes, mas tudo aquilo que foi criado por meio do trabalho e das relações humanas perante a natureza. As esquerdas contemporâneas também nos ensinam a importante lição de que a história não é uma sucessão de fatos ajuntados e organizados, mas é movimento. Esse movimento da história é feito pela relação entre os contraditórios. Isso significa que a modelagem do real surge como efeito das relações entre categorias que só existem como negação de si: o burguês é o não-proletário e o proletário é o não-burguês e ambos só existem e movem-se no mundo em função dessa relação, produzindo-a ou superando-a, no qual o real é a arena onde se processa essa disputa exclusivamente por meio das ideias.
É desse modo que o espírito humano se reconhece na história, ou seja, como produtor de ideias. Mas quando elas não são reconhecidas e creditadas a forças exteriores às relações do contraditório, temos o estranhamento que indica que o espírito humano não se reconhece ali: a alienação. Por que isso é tão importante? Porque a esquerda brasileira se firma na produção, conservação ou negação de ideias. E isso acontece na arena da dialética. Observe o diferencial das esquerdas em preocupar-se em elaborar as falas, as estruturas de pensamento e discurso que vão conscientizar as massas, conduzi-las ao pensar certo, ao voto certo, ao nome certo. E chegamos ao Estado. Hoje, podemos dizer sem medo de errar que as esquerdas são as maiores defensoras do Estado como comunidade universal, que está acima dos interesses particulares e que tem por missão principal harmonizar as relações sociais por meio das suas leis, instituições e políticas de modo a que os diferentes interesses sejam atendidos conforme a natureza da individualidade, da subjetividade e da cidadania. Os partidos de esquerda, atualmente, são os mais determinados defensores do fortalecimento e do protagonismo estatal e da democracia liberal.
Se você leu até aqui e reafirmou o entendimento de que a esquerda brasileira na atualidade é comunista, errou fragorosamente. Até aqui as análises que soam tão atuais e familiares são, na verdade, do pensamento do filósofo idealista alemão George Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Ao que parece, as esquerdas atualmente esqueceram ou pararam de ler Karl Marx (1818-1883). Soa cada vez mais distante no horizonte as noções do que de fato representa o Estado como coletividade ilusória que impõe e organiza as relações de dominação de uma classe sobre as outras, das contradições que movem a história humana não pelas ideias, mas pelas relações de produção. Pela alienação imposta na naturalização das propriedades, dos regimes políticos e das instituições e de tudo o que antecede e determina como condições de existência como se sempre ali estivessem e fossem alheias à ação dos seres humanos. Pelo fetichismo das mercadorias, tidas como coisas, assim como o trabalho e o existir humano que, como igualmente coisas, se relacionam e se valoram pelo mercado. Pelo abandono de qualquer perspectiva revolucionária em favor do reformismo... e por aí vai.
Portanto, para uns, não há com o que se preocupar; para outros, não há que se alimentar esperanças de que as organizações partidárias de esquerda nos microcosmos das regionalidades farão nas suas conversas e composições coisas tão diferentes assim que se praticam “do lado de lá”, da direita (a extrema-direita, por sua vez é uma aberração neofascista, não se compara). A mesma idolatria pelos nomes estelares (ou pelas dinastias e seus herdeiros), a mesma composição e acordos pela “governabilidade”, a mesma busca pela acomodação em cargos, o mesmo blá, blá, blá de sempre. Mas poderá surgir algo realmente diferente? Talvez... Afinal o próprio Marx falava sobre isso, antes de ficar fora da área de cobertura ou desligado.