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Coluna

Preguiça

27 agosto 2022 - 12h31

É com relativa disposição que na coluna de hoje falaremos sobre a preguiça. Pelas bandas de cá, do mundo cristão, ela é um pecado devidamente classificado com todas as suas características mais marcantes: uma exaustão do espírito, distração constante da alma e outros atributos menos poéticos como o desleixo, negligência, lentidão, entre outros. Mas nem sempre a história foi assim.

Durante séculos a preguiça ficou escondidinha no ócio. E o ócio era uma prerrogativa dos bem-nascidos, os aristocratas das sociedades antigas. É preciso explicar: somente quando não se está preso a atividades produtivas pela submissão à necessidade de sobreviver (como eu e você estamos, certamente) o ser é capaz de atingir um estado de contemplação das ideias, cuja reflexão proporciona o desenvolvimento pessoal ou mesmo da coletividade. Nos idos medievais o reino dos francos, ao final da dinastia merovíngia, foi governado por uma sucessão de reis preguiçosos. Entraram para a história como “reis indolentes”. A preguiça teve seu preço. E ironicamente o indolente Childerico III foi deposto por Pepino, apelidado de “O Breve” (na verdade a “brevidade” se referia à sua baixa estatura). Começava a vibrante dinastia dos carolíngios.

Mas foi na Modernidade, com o despertar do capitalismo, que a preguiça perdeu sua nobreza. Aliás, na sociedade burguesa o que “enobrece o homem” é o trabalho (algo surreal para os ouvidos de um nobre, registre-se). As novas relações de produção e trabalho se somaram à doutrina de Calvino e formaram uma nova e complexa sociedade onde trabalhar é tanto uma necessidade coletiva quanto um padrão moral para a pertença social. Quem não trabalha deixou de ser nobre e virou vagabundo. E houve um tempo que a vadiagem era punida com todos os rigores da lei.

No paraíso dos trópicos americanos, terras colonizadas e recolonizadas tantas vezes, a preguiça era pejorativa. Coisa de índio que não se adaptava à sanha exploratória dos europeus, assim como os africanos, igualmente escravizados. A escravidão terminou, mas o racismo derramou sua pestilência sobre as gerações futuras. Não é por acaso que se atribui maldosamente a preguiça a tudo que não pertence ao laborioso mundo branco. Pura fantasia maliciosa. A lição é quase a mesma desde o século XVI: para as classes inferiores, a pedagogia do trabalho. E isso explica a quem se destinam os “cursos profissionalizantes” e os cursos superiores para profissões liberais (como a quase dinástica medicina e a praticamente dinástica magistratura).

Mas nem tudo está perdido para a preguiça. Hoje ela vem sendo ressignificada, recolocada em posição de maior respeito. Dizem por aí que Bill Gates prefere os preguiçosos pela sua capacidade de se livrar do trabalho de um modo tão simples que conseguem as melhores soluções. Seja ou não uma lenda cibernética, o fato é que as empresas mais produtivas do planeta já perceberam que um toque de preguiça tem feito muito bem! A criação de ambientes corporativos onde os funcionários tenham tempinhos dedicados ao ócio e ao lazer já se provaram eficientes, sobretudo de onde se espera uma alta performance.

Isso ainda contrasta fortemente com a realidade de quem ainda não trabalha nesses ambientes, onde qualquer mínimo elemento que retire o trabalhador da voraz e ininterrupta “linha de montagem” das metas e resultados é considerado uma externalidade batizada com um nome carrancudo: distrator. E com as novas tecnologias o trabalho (que é coisa séria) invade a casa, rouba o sono e transforma os gadgets em coleiras e tornozeleiras para condenados. Qualquer diversão é roubo de tempo produtivo. Mesmo nas redes achamos que somos alguém se “produzirmos” conteúdos “relevantes (o que nos faz beirar o ridículo muitas vezes). E só para constar, o texto vai terminar por aqui. Por pura preguiça de finalizar de outra forma. E tenho dito.

(*) Paulo Cotias é professor de História.