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Coluna

O espelho de Eichmann

08 outubro 2022 - 13h57

O ano de 1961 foi marcado pelo polêmico julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann. Dedicado operador do regime, foi o responsável pela deportação e execução de milhares de judeus durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O processo teve por fim a condenação do nazista ao enforcamento em 1962, em Israel. Vítima da perseguição do regime de Hitler, a filósofa judia Hanna Arendt acompanhou e estudou detalhadamente o julgamento e a personalidade do Eichmann, no esforço de compreender o fenômeno nazista em sua essência. Da sua lavra, dentre outras, duas obras se destacam com relação ao tema: “A Origem do Totalitarismo” e “Eichmann em Jerusalém”.

Em sua análise sobre o surgimento dos estados totalitários, Arendt recapitula o conceito de “mal radical” em Kant e desenvolve a ideia do “mal absoluto”. Em ambos, o mal atinge proporções nas quais a perversidade não encontra nem freios e nem razões. Esse mal não tem sentido, motivo, justificação e escapa de qualquer possibilidade de discussão pelas balizas da moral e da ética. Com relação ao julgamento, o que impressionou a filósofa foi a capacidade do réu em subverter o caráter desumano das suas ações, deslocando a barbárie dos seus crimes para a virtude da obediência. Dito em outras palavras, Eichmann era um cidadão de bem, funcionário exemplar, cumpridor dos seus deveres, pagador dos seus impostos, temente a Deus e, acima de tudo e de todos, obediente às ordens dos seus superiores. Assim, tentou transformar seu nefasto ofício em uma simples operação burocrática. Ele apenas obedecia com eficiência o que seu líder o ordenara. A partir dessa postura, Arendt desenvolveu o conceito de “banalização do mal”. O mal que é relativizado, tolerado, justificado, suavizado e mascarado no cumprimento do dever sem que pese sobre quem o faz a consciência da responsabilidade pelos seus atos.

Há muito de “Eichmann” na mente do nosso povo brasileiro. Muitos tem aceitado de bom grado o mal absoluto, normalizando, relativizando, praticando e defendendo com eficiência comportamentos racistas, beligerantes, misóginos, preconceituosos e homicidas. Quantos riram e debocharam das pessoas morrendo asfixiadas ou mesmo sem atendimento, sem vacina e sem amparo na pandemia recente? Quantos reproduziram discursos de que em vez de vacinas, era só passar álcool em gel e soltar os trabalhadores para “ganhar seu pão” entregues à própria sorte e com risco de perder a própria vida? Afinal, quem tiver que morrer vai morrer, não? Quantos se entregaram clamorosamente aos remédios para vermes como uma panaceia esdrúxula? ]

Quantos debocharam da fome alheia? Quantos vibraram em poder se armar até os dentes e destilar sua insignificância em atos de intimidação nas coisas comuns do dia a dia (como uma fechada de trânsito ou uma rusga entre vizinhos)? Quantos passaram a normalizar a violência verbal e física como forma de impor sua visão tacanha? Quantos passaram a duvidar de saberes que estão consolidados exaustivamente há pelo menos trezentos anos? Quantos proclamaram raivosamente os risíveis conteúdos de WhatsApp como a quintessência da verdade? Quantos passaram a atacar a democracia e suas instituições? Quantos perderam a capacidade de discutir mediante razões e se restringem, espumando, a cuspir adjetivos clichês em vez de argumentos e fatos? Quantos agora leem esse artigo xingando mentalmente, verbalmente ou digitalmente o limitado autor dessas parcas linhas apenas por ter colocado diante deles um espelho?

Quantos não mentem para si mesmos? E para os outros? E aceitam que tudo isso e muito mais venha de seus líderes e avatares. Deles tudo se justifica, tolera e se explica. E nessa tolerância mesquinha e perversa vamos transformando a mentira em um instrumento de violação do nosso dever de sermos humanos e verdadeiramente bons, como diria Kant na “Doutrina das Virtudes”, nos reduzindo como Eichmann a cúmplices.

(*) Paulo Cotias é professor de História.