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Coluna

Indivíduo monetizado

22 fevereiro 2024 - 13h43

Se um iluminista voltasse a caminhar nos nossos tempos sentiria, eufórico, estar finalmente no paraíso. Ficaria perplexo sobre o como o individualismo conseguiu prevalecer como forma ainda que, na essência, tudo seja sustentado pelo esforço invisível da coletividade. Há algo de sedutor no individualismo. Ao nos diferenciarmos, construímos uma noção de identidade e uma naturalização do que consideramos como fundamental que as sociedades garantam a cada indivíduo simplesmente por ele existir, algumas coisinhas fundamentais aqui e ali como os direitos humanos, por exemplo.

Porém, há uma embrulhada histórica aí. Nossos antepassados iluministas acreditavam que o individualismo com sua contraparte, a razão, seriam, juntos, a cajadada que mataria dois coelhos de uma vez só: as superstições religiosas e a rigidez hereditária da sociedade feudal. O que conseguiram com a tal pancada? Uma nova religiosidade, o liberalismo e uma nova hierarquização social praticamente tão hereditária quanto a feudal, mas que não seria mais forjada nas tradições e sim nas condições econômicas.

O indivíduo que nasceu da e na classe dos trabalhadores, ao deitar-se sonha talvez o mesmo sonho que um camponês medieval. Só que com uma diferença mórbida: Livrar-se da situação de nascer camponês exigia a intervenção de eventos quase miraculosos como a graça de um nobre generoso cruzar o seu caminho. Já o nosso trabalhador contemporâneo acredita, piamente, que mudar a sua condição e igualá-lo aos mais endinheirados só depende dele mesmo.
No ontem, ser nobre exigia nascer assim e compartilhar das distinções que marcavam essa condição. Hoje, o que nivela é a distinção de ter ou não capital. E esse capital, já que não veio para o trabalhador como condição de nascimento e não virá também por meio do trabalho, só poderá vir por um modo: a sua relevância como indivíduo, como nos versos de Florbela Espanca: “sonho que sou alguém cá neste mundo... Aquela de saber vasto e profundo. Aos pés de quem a terra anda curvada”. 

Atento como sempre, o capital percebeu isso também e monetizou a vaidade e a busca irracional pela relevância. Ao acreditarmos que a relevância se retroalimenta da influência, esperamos que, de algum modo, recebamos o grande prêmio. E uns até recebem frações dessas recompensas por certo tempo. O modo, varia, desde o compartilhamento de saberes importantes ao mar da pasmaceira, da vulgaridade e do ridículo. E, para quem não consegue lidar com os novos tempos, a coisa pode ficar muito séria para a saúde mental e para a noção de vida real.

O perigo é acabarmos caindo nas armadilhas da ilusão da relevância, da produtividade e do consumismo, contaminando desde as nossas relações sociais até o modo como vivenciamos a religiosidade, como uma espécie de consumo da fé com cashback e clube de vantagens para assinantes premium do “divino”. Como termina o mesmo poema de Florbela: “e quando mais no céu eu vou sonhando e quando mais no alto vou voando, acordo do meu sonho... E não sou nada!