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Coluna

Encenação política

05 outubro 2023 - 14h00

Um dos pontos de fragilidade da democracia contemporânea é a perda da capacidade de entrega dos governos e o declínio acentuado na qualidade dos agentes políticos, estejam ou não na posição de gestores. Ao nível dos estados e municípios, percebemos facilmente um movimento de deriva, no qual os projetos de poder substituíram os projetos político-sociais. Quando isso acontece, as ações dos partidos, seus operadores e candidatos, gravitam apenas no como chegar ao poder e, uma vez nele, contorcer o estado para que se torne o meio pelo qual esse poder será perpetuado. Dito em outras palavras, é um processo de usurpação margeado pela legalidade do voto.

Essa usurpação é metódica e vem em formas típicas como o uso da religiosidade, no qual as questões de ordem moral e comportamental são postas como os meios para “salvar” ou “resolver” todos os problemas da sociedade, ou ainda na velha produção de “ungidos” para liderar o rebanho popular, ou mesmo nas revelações sobrenaturais como justificativa para decisões, digamos, mais mundanas do que celestiais... Pode vir na forma do populismo deslavado, da construção de uma figura paternal ou maternal que transforma a máquina pública em um lugar para acomodar aliados, ou na forma mais próxima às das organizações do poder paralelo com o loteamento de cargos, fornecedores, controladores de órgãos sensíveis, dados aos “investidores” ou “mantenedores” do “grupo”. Pode vir na máscara do sentimentalismo como forma de engambelar a população e apelar ao coitadismo, perseguições e heranças atemporais ou para esconder a incapacidade administrativa, ou para esconder para onde essa capacidade verdadeiramente se direciona. Pode vir na falsa promoção da participação popular direta ou segmentada, onde as discussões geralmente são como eternas terapias de catarse, compostas por particularismos e dos pitacos mais estapafúrdios. Pode vir na forma do revolucionário seletivo, aquele que grita e defende quando é oposição, mas se acomoda bem quando é situação. Exemplos não faltam.

O que deveria ser então? Primeiro, é preciso entender que o povo não é desprovido de ideias por estar mais próximo da necessidade do que da contemplação. Segundo, o povo não é uma ideia abstrata ou uma categoria que intelectuais ou operadores creem saber as necessidades. Terceiro, o povo não é um rebanho a espera de um messias. Quarto, o povo é um conjunto heterogêneo, com necessidades diferentes, mas sujeito à mesma marcha da história. Quinto, os partidos e governos precisam construir propostas, baseadas em dados, em análises da situação real das pessoas, vê-las e ouvi-las nas suas necessidades, mas sem transformar esse momento em um caleidoscópio inútil (e oportunista) de achismos. Para tornar os debates efetivos, é colocá-los em plataformas que garantam a realização de projetos, ações, políticas públicas que possam ser acompanhadas em sua execução e efeitos. Ideias devem vir com cifras, prazos, responsáveis e acompanhamento, senão, tudo é pura encenação.