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Coluna

Dois coronéis

24 março 2023 - 07h00

Não é incomum as pessoas qualificarem de coronelismo uma experiência política de domínio indesejado. Se por um lado é difícil crer num aspecto positivo, não obstante se faz necessário um ponto de inflexão: nem todo coronelismo é igual. Sem maiores filtros vamos pensar apenas nos dois mais conhecidos, o urbano e o rural.

Podemos afirmar sem medo de errar que o coronelismo urbano é um produto deformado do rural. Em ambos temos a constituição de famílias políticas que vão emplacando de modo cada vez mais capilar os membros diretos, colaterais e associados da parentela. Da mesma maneira, nas duas modalidades, temos o controle praticamente absoluto da coisa pública como uma extensão dos interesses privados.

Insistindo ainda um pouco mais nas semelhanças, temos a transformação da Justiça, assim como todos os demais poderes e instâncias da estrutura republicana, como extensões de domínio, ou seja, basta que se tenha dinheiro, poder de fogo (aqui tomado de maneira literal), ou bons vínculos de reciprocidade para que se coloque a interpretação da legalidade dos atos sob o crivo da vontade pessoal. O resultado mais visível é o escárnio cínico dos mandatários quando confrontados com seus próprios malfeitos, cientes de que estão acima de tudo e de todos, portanto, com plena capacidade de justificar o que bem entenderem.

Sem prolongar esse olhar das duas faces no espelho, encontramos outra semelhança fundamental, a formação de currais. É muito importante que existam currais nessa modalidade de se fazer política. Entretanto, há uma baia para cada tipo de animal. Existe o espaço para os rebanhos do gado xucro, aquele que é importante no volume, mas facilmente controlado pelos demais animais de estrebaria: cavalos, cachorros e outros a quem se pode delegar algum poder.

Entretanto, as semelhanças param por aí. E justificando o porquê, o coronelismo urbano é um furto pervertido do rural. É forçoso reconhecer, sem nenhum mérito adicional – registre-se – que no coronelismo rural ainda prevalecem dois elementos completamente ausentes no urbano: o cuidado com as pessoas e, consequentemente, o zelo com a oferta do que elas precisam. É do brio do coronel rural cuidar, proteger... Uma contrapartida que mais se assemelha ao proletariado romano, aos magistrados e seus clientes, uma relação de contrapartida, na qual um apadrinha o outro, e a troca de benefícios se dá na escala definida pela posição de um e pela necessidade do outro.

Já o coronel urbano possui um carisma cínico. Abraça e beija seu povo na mesma intensidade com que o priva do básico. Após a conquista do poder, ele não tem o senso da contrapartida, do compromisso. Pelo contrário! Torna-se unilateralmente violento, arbitrário, comportando-se não como um dispersor de benefícios, mas como um saqueador insaciável. Se o prestígio dá aos coronéis rurais a continuidade e capilaridade de seu poder, aos urbanos só resta o uso da paga mercenária, da ameaça de mais terror e caos e da quase inevitabilidade de sua presença pela capacidade de produzir dor e escassez.

Os dois não são desejáveis. Mas apenas um ainda se faz muito mais vivo e presente.