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Coluna

Alívio não é cura

05 janeiro 2023 - 17h54

A vitória do campo progressista nas eleições presidenciais e a sobrevivência das instituições democráticas e do Estado de Direito foram interpretadas e manifestadas como fatos geradores de alívio frente aos múltiplos males e recuos civilizacionais observados nos últimos anos. O governo eleito deu a largada do modo como era presumido em face das circunstâncias, a saber, uma frente que pendulou entre a centro esquerda e direta e que teve, pela força do pragmatismo da governabilidade do presidencialismo de coalização, que se transformar na mais ampla frente construída no período pós-redemocratização. Esse tipo de estratégia vai acertadamente na contramão dos erros anteriores. Sem base ampla na largada e com quase todos os espaços ocupados pelo PT e partidos coligados, o governo de então embaralhou-se na conquista do “Centrão”, abastecido pelo “mensalão” e por outras práticas pouco republicanas. Os governos passaram, o “Centrão” ficou renovando-se talvez na forma, mas nunca na essência. Só que dessa vez os espaços e o acesso aos recursos dentro das margens da legalidade foram uma acertada decisão, a despeito da chiadeira dos aliados. Lula 3 não pode errar nessa direção sob a pena de impulsionar os discursos e lideranças adversárias.

Acerta na mudança retórica e prática, na diversidade bem-posicionada, em que fará a diferença, aliando aguçado senso político com a competência técnica. Assim foram as nomeações e primeiras ações em pastas sensíveis, reassumidas, reinstaladas ou ressignificadas, como a dos Direitos Humanos, Meio Ambiente, Mulheres, Povos Indígenas, Cultura e Diversidade Racial. Acerta na recomposição das políticas sociais de largo espectro (sobretudo no ataque imediato ao cenário de miséria e fome), do ensino superior público, da ciência e tecnologia, da saúde em geral. Reafirma a ciência e o compromisso humanístico do Sistema Único de Saúde (SUS). Mostra intenções em recalibrar as reformas (sobretudo a trabalhista) e realizar as que faltam, como a tributária, assim como a recolocação do país no cenário internacional sob bases sustentáveis e responsáveis, promovendo a integração multilateral sem as amarras de visões ideológicas obtusas. Recoloca o diálogo como instrumento de política federativa.

Na economia, espera-se por ver como as quatro cabeças heterogêneas em que se desdobrou a área (e mais a direção do Banco Central) vão chegar a consensos capazes de aliar o desenvolvimento com a responsabilidade fiscal. Há intenções vistas como positivas, mas que ainda carecem da clareza que só o andamento das atividades permitirá analisar. Entretanto, a lembrar dos governos Lula 1 e Lula 2, o mercado não tem tantos motivos para alarde. Se tudo isso é motivo de alívio, é importante lembrar que alívio não é cura. O fim da Segunda Guerra Mundial venceu e congelou o fascismo (e o nazismo) como fenômeno típico de um tempo e configuração histórica delimitados, mas não impediu que surgissem o neofascismo e o neonazismo, que, mesmo sob condicionantes e configurações diferentes, trazem consigo as mesmas bases de suas respectivas matrizes: apologia à violência, negacionismo, segregação de todo o tipo, negação dos conflitos sociais, alianças nefastas com o capital, entre tantos outros exemplos. Por isso, apesar das expectativas de avanços e reparações, há que se cuidar com total prioridade do combate ao neofascismo brasileiro. Ele não é a oposição simples de quem “discorda ou não gosta” do PT, de Lula ou do espectro político mais à esquerda (esses vão esperar pela possibilidade de alternância eleitoral). É o multiforme e perigoso movimento que soube pacientemente cultivar seus espaços e mostrar suas práticas mais bizarras quando teve as rédeas do governo nas mãos. Se não conseguiu mantê-las até aqui, não significa que simplesmente renunciou a elas e se converteu ao credo democrático. Longe disso. A única fome que o fascismo sente é a de poder.