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07 novembro 2022 - 11h43

As manifestações a que o presidente chama de legítimas não o são sob o ponto de vista do espectro democrático pelo simples motivo de que atentam frontalmente a tudo o que ela representa. Acatar o resultado de uma eleição é um dos elementos importantes do seu modus operandi, no qual ao lado derrotado cabe a oposição responsável e o controle social do governo e ao lado do vencedor, governar para todos. É um princípio elementar. A todo o momento o governo sabia das reais possibilidades de derrota. Questionou o Judiciário, esticou a corda do confronto até o limiar da ruptura institucional, mas se viu forçado a recuar. Atacou implacavelmente as urnas, novo recuo. Foi para cima das pesquisas, sem efeito. Tentou desqualificar as eleições por supostas fraudes, sem comprovação.

Ao final do pleito, ao contrário de qualquer mandatário de uma democracia erigida sob uma ordem constitucional, o atual presidente não reconheceu o resultado, bem como não parabenizou o vencedor. Na verdade, ganhou tempo para ver o tamanho do cacife da sua liderança. Porém, todos os poderes constitucionais, líderes de partido, chefes de estados estrangeiros e até mesmo boa parte do seu staff se anteciparam no cumprimento do rito lógico, restando ao presidente o último subterfúgio de alguém isolado, a ativação da seita. Uma seita não precisa de elementos lógicos de comportamento. Geralmente bastam alguns comandos para que ajam conforme o esperado, nutridos com frases de efeito e convencidos de que cumprem um papel muito importante, decisivo, diferenciado, algo como salvadores de uma verdade que só os iluminados podem ver. De fato, quando não terminam em suicídio coletivo ou abduções extraterrestres, resta um melancólico e vergonhoso desfecho para esse tipo de pregação e articulação. 

E é importante ressaltar o lado teatral desse processo, cujo comando é entendido e reproduzido na velocidade dos grupos de mensagem: não estão ali defendendo o candidato derrotado, mas pelo país e contra o candidato vencedor. Já o presidente endossou o script em seu último pronunciamento, reforçando que não pediu que isso fosse feito, mas que apoia as manifestações. Como sempre, sinais trocados para dizer uma coisa e fazer outra. Por trás disso tudo, o uso da baderna popular, da instabilidade e da capacidade de cooptar setores das polícias sob o controle político, servem a um propósito estritamente pessoal: o tumulto, o “Capitólio Brasileiro”, rocambolesca imitação do trumpismo, se torna capital político para pressionar e negociar o dia seguinte. Em outras palavras, “garantias” para uma vida sem a imunidade que o poder confere. 

Para efeito de esclarecimento, basta observar que uma das principais bandeiras dos “movimentos” é evocar o artigo 142 da Constituição Federal que, na prática, fala entre outras coisas sobre a natureza e o papel das Forças Armadas, sendo o principal deles a defesa da própria Constituição. Ora, ao se clamar lacrimosamente a intervenção militar, algo banido pela própria Constituição de 88, o que se pede deslavadamente é um golpe de estado. Portanto, criminoso, antidemocrático e inconstitucional. Mesmo o artigo 34 da CF, que trata das possibilidades da Intervenção Federal, não contempla o que se pretende. Essa intervenção precisa de autorização do Congresso, é pontual e, grosso modo, se faz quando um ente da federação vive um caos econômico ou social que demande o restabelecimento da ordem. Portando, nada tem a ver com uma anulação do processo eleitoral. Numa democracia, precisamos entender que a alternância de poder é normal. Isso não significa que a minoria perdeu sua cidadania, pois a vitória não é um cheque em branco e licença para o poder autocrático. Saber perder hoje e negociar as bases do amanhã é o que mostra a maturidade e a sensatez de um povo, algo que geralmente se consegue com uma sólida educação.