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Coluna

A trágica hipocrisia

31 março 2023 - 06h00

Tragédias como a ocorrida na Escola Estadual Thomázia Montoro, em São Paulo, dão a sensação de que apenas em circunstâncias muito específicas os professores se tornam objeto de atenção. No caso, a morte da professora Elisabeth Terneiro, esfaqueada por um aluno enquanto fazia a chamada de sua sala de aula, gerou uma comoção nas redes, inundando-a de postagens condoídas, indignadas. Narrativas foram produzidas também rapidamente. Não que a professora em questão não mereça nossa empatia, comoção, luto e indignação pelo modo como fez sua passagem. Não é isso. A questão é que o que se formou nas redes sociais é, em sua maioria, um exercício de hipocrisia. Comentar tragédias no tempo em que elas ocorrem dão engajamento. Quando as tragédias são no campo da educação é ainda mais fácil e pouco comprometedor marcar posições. Aqui, o enredo ajuda. Um aluno problemático, com reiterados comportamentos violentos e, presume-se, alguma patologia psíquica esfaqueia covardemente uma professora de idade avançada que amava o ofício de educadora. Simples. Temos um vilão, uma vítima inocente e, de quebra, uma heroína: a professora Cinthia Barbosa, que arriscou sua vida imobilizando o aluno e impedindo que ele fizesse novas vítimas fatais. A história é essa, a mídia acompanha durante um tempo o estado de saúde dos recuperados, uma ou outra nota para onde vai o menor infrator e fim de conversa.

E por que hipocrisia? Quando políticos correm para as redes para manifestar sua indignação com o caso, mas que pautam sua vida pública pela mais completa indiferença às condições de trabalho, salário e saúde docentes, há hipocrisia. Quando, além da indiferença ainda votam contra os profissionais da educação ou meramente se preocupam com seus arranjos pouco republicanos, como a ocupação de cargos, vagas, controle e influência sobre os setores educacionais ou destinação de seus recursos, há hipocrisia. Não custa recordar o que aconteceu, e acontece, todas as vezes que os professores e demais profissionais da educação se mobilizam a ponto de realizar paralizações e greves em função das necessidades urgentes e extremas (como em casos de colegas impossibilitados de manter seu sustento com dignidade ou mesmo com a saúde estraçalhada pelas condições precárias de trabalho). As postagens mudam. Professores viram vagabundos, viram os que querem mais moleza do que já têm. Apanham nas ruas, recebem gás de pimenta, são descontados covardemente nos seus salários, sofrendo todo o tipo de violência institucional e jurídica. Aqui há hipocrisia.

Há hipocrisia quando não se reconhece que os professores estão diretamente lidando com problemas relacionados à violência, aos transtornos potencializadores de situações de risco. Há hipocrisia nos belos discursos inclusivos, mas que não oferecem condições decentes para o pleno desenvolvimento dos alunos com deficiência, pedindo-se apenas que se faça qualquer coisa e que se documente essa qualquer coisa para satisfazer a burocracia do poder e, eventualmente, alguma autoridade jurídica muito preocupada.  Há hipocrisia quando não se reconhece que o magistério, especialmente o público, se tornou uma máquina de moer professores. Trabalhando no calor, com recursos precários, baixa remuneração e todo um sistema de vigilância e punição, bastante eficiente em controlar o corpo, a tê-lo de modo obsessivo no lugar e hora que o poder determina que esteja, em fazê-lo esquadrinhar em documentações esdrúxulas a “magia pedagógica” (quando não, a “magia da empatia”, ou ambas...) que o faz tanto assumir a culpa pelo fracasso fragoroso do ensino quanto a presumida solução (ou intenção dela), devidamente registrada e documentada. Em suma, se o corpo cumpriu a hora e se esse corpo colocou algo “pedagógico” no papel, está tudo resolvido (pelo menos até o próximo ciclo de culpabilização pelos fracassos).

Portanto, à professora nosso pesar. E aos hipócritas, que tomem vergonha na cara.