A quem interessa transformar a democracia em um modelo harmônico? A princípio, a pergunta pode parecer estranha. Afinal, o objetivo maior da democracia não seria a harmonia? Aqui reside uma das maiores distorções que, uma vez naturalizada, só tem beneficiado as práticas viciantes e corruptas da política contemporânea.
Da sua criação na pólis de Atenas ao seu desenvolvimento ao longo de idas e vindas no tempo histórico e nos diferentes espaços sociais, a democracia sempre foi um sistema de confronto. Se não o fosse, não seria necessário apor a ela, por exemplo, a concepção de freios e contrapesos.
Fato é que seja nas discussões nas ágoras gregas ou nos parlamentos contemporâneos, o que faz a democracia poderosa é o confronto, a impermanência, a existência da oposição, a capacidade de alternância do poder e o desconforto constante provocado pelos desafios do dever por aqueles que desempenham funções públicas.
O que vemos, então? A tentativa de se vender a democracia como algo harmônico, consensual, onde cabe a união de todos em um só pensamento, ação e intenções. Mas, isso não é, nem de longe, democracia. É, meramente, uma ficção oportunista.
O uso desse discurso mascara o verdadeiro interesse pela mera manutenção dos seus espaços de poder, como o controle direto e indireto de cargos de comando em governos e, claro, de alocação de aliados na máquina pública, de verbas e obras, enfim, de tudo aquilo que caracteriza o político fisiológico atual. E isso não tem absolutamente nada a ver com a preocupação com o bem público ou uma gestão mais eficiente em suas estruturas.
O correto em uma democracia é que a alternância do poder não seja capturada pelas ameaças de retaliação, de inviabilização, operando um jogo de bastidores que faz com que novos agentes se tornem reféns ou meros fantoches dos que se consideram e operam como verdadeiros donos do poder. A construção disso tudo passa pelo achamento ou até convencimento de uma possível composição de interesses, isso nas coxias e, em público, a falácia da harmonia e da união por um só objetivo sublime.
Assim, perdendo-se a essência do que é verdadeiramente a democracia, ou seja, o embate de ideias, de projetos e a troca efetiva dos agentes públicos e dos modos de fazer a máquina pública funcionar, resta apenas a redução da política ao medíocre exercício da manutenção dos feudos de controle. Nada mais. Mas, por razões óbvias, políticos jamais assumirão o interesse que os move, camuflando-os por meio da noção de que, não importa quem governe, tudo continuará “harmônico” como sempre. Já deu para entender claramente o sentido dessa harmonia.
Democracia se constrói na alteridade constante e no respeito ao sagrado dever de governar para todos, ou seja, o que é diferente não se submete, mas é atendido em seus direitos fundamentais e, por meio da negociação, do que considera particularmente importante. Isso é um processo e exige grande habilidade. Em suma, a composição é uma arte; a harmonia, um engodo útil.