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Coluna

Quarentena

29 maio 2020 - 21h25

 Os dias de confinamento tem me feito revisitar histórias, mal e bem passadas, de uma maneira diferente. Olhar para esses momentos ,  nesse momento, descasca machucados  que, até então, achei cicatrizados. Vamos remexendo e descobrindo. Na verdade, o que passou, ainda está lá, guardado e congelado naquela imagem de um dia qualquer de nossas vidas.

Além das faxinas – na casa, no corpo, na alma, tenho feito revirar fotos e diários. Gavetas são vasculhadas; caixas e envelopes abertos; histórias remexidas. Tudo em busca de uma coisa que escapou e não percebi: a essência. Ouço agora o depoimento quase sofrido do escritor que nos deixou, Gilberto Dimenstein. Abatido pelo câncer, ele descobre aos 63 anos que seus olhos não olharam direito pelo que passou. Neste momento tão crítico, isolados de tantas pessoas que amamos, precisamos resgatar a essência do “olhar”.

As imagens sobre a cama, pessoas que conheço bem, despertam lembranças remotas, acordadas pelo presente intenso dos dias atuais. Esta nova vida de distâncias “carnais”, fazem esses achados tomarem um novo significado. Ali, gente próxima e amada; filhos miúdos; mãe; viagens inesquecíveis; amigos que ainda estão e outros que já partiram... Vivo num só fôlego, encontros de uma vida toda dentro do meu quarto, entregue e espalhada como as fotos daquelas pessoas.  Tudo mexe tão intensamente comigo que, perco sem sentir, boas horas entre choros e risadas. A vida é mesmo um filme intenso e curto. De repente, hoje já é um ontem distante. 

Nestes dias atuais, quase impossíveis de se engolir, tomamos doses diárias de uma esperança que achei que não tínhamos. Estamos mais atentos aos detalhes;muito mais cuidadosos e perceptivos; menos consumidores compulsivos; mais afetivos... A nova conexão é digital, mas totalmente diferente do que fazíamos antes. Antes tão mecânico; hoje apreciamos cada palavra dita ou escrita com atenção e cuidado. Quem estava longe, se aproximou; quem estava perto , ficou ainda mais. Valores mudaram de posição. Agora são convidados principais. Não temos mais paciência para o que é fútil. Quando encontro o bilhete do meu filho, que aos 8 anos de idade, diz que “sou a melhor mãe do mundo”, ganho toda uma quarentena de felicidade.  Importante sentir que, mesmo distantes, fisicamente, estamos re-significando maneiras de estarmos juntos.  Isso é um sonho, dentro de um pesadelo. Você dirá que é paradoxo. E é.
 Remexer coisas passadas é fazer viagem no tempo. Elas continuam lá, guardadas nas gavetas da memória. Boas; ruins. Todas lá.

E assim, seguimos, neste fluxo exagerado de acontecimentos inéditos, tenebrosos e ficcionais, colocando-nos num “filme” que jamais pensamos participar. Voltar ao passado com olhos atentos, procurando naqueles breves registros, momentos felizes, nos faz avaliar o quanto é importante mudarmos de atitude. Não tenha pressa, mas faça alguma coisa para que não se arrependa de ter vivido.